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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

A Farra do Bezerro

A FARRA DO BEZERRO

Em algumas comunidades do Brasil, ainda é infelizmente praticada uma espécie de tourada maltratando até a exaustão um boi, que no final acaba por ser sacrificado. Essa prática é crime, e é chamada de Farra do Boi e apenas evidencia a violência do pecado humano.


Bem distante no tempo, mas não no conceito, começou há milhares de anos a farra do bezerro. E ela também maltrata a igreja à exaustão. Vamos revisar Êxodo, capítulo 32.

Após 40 dias aguardando Moisés voltar do alto do monte, onde ele estava recebendo os mandamentos de Deus, o povo hebreu ficou impaciente. Pressionaram então Arão, irmão de Moisés e escolhido como sacerdote por Deus. O povo pediu a Arão que fizesse para eles deuses, ídolos que continuassem o percurso pelo deserto, assim como o Senhor havia feito desde que saíram do Egito. Moisés não voltava, novas ordens não estavam sendo dadas, e eles queriam avançar.

Arão então pede os brincos e adornos de ouro do povo, derrete e forma um bezerro de ouro, dizendo "eis os nossos deuses, que nos tiraram do Egito. Amanhã vamos ter uma festa em honra ao Senhor". Trouxeram animais, fizeram sacrifícios e comeram e beberam aos pés do ídolo de ouro, do bezerro.


Pelo verso 5 de Êxodo 32, é possível entender que Arão achava mesmo que o que ele havia forjado em ouro não era um deus pagão, mas uma estátua que representava o Senhor e assim poderia ser levado adiante, adorado e consultado.

Josué aparentemente tinha ficado no começo da subida do monte, esperando Moisés, e ao encontra-lo pergunta assustado "ouço um barulho de guerra no acampamento do povo".




Moisés já havia sido avisado por Deus sobre o que estava acontecendo, e corrige Josué: não é barulho de guerra, nem festa de vitória de guerra nem lamento de derrota de guerra, mas de festa, de gente cantando.

O que podemos aprender desse texto?

Um deus pra chamar de eu




Mas porque eles queriam que Arão fizesse o tal ídolo? Porque Moisés estava demorando, e eles queriam sair dali mas precisavam se sentir confiantes com alguma divindade indo na frente. Eles queriam um deus que os atendesse no tempo deles. Um deus que eles mesmos pudessem levar adiante nos seus propósitos, e fosse consultado quando quisessem. Eles não adoravam o Senhor pelo que Ele era, mas pelo que Ele estava servindo: para avançar pelo deserto pra terra prometida. Se "esse tal Deus não está mais fazendo isso, a gente troca de divindade, tanto faz que deus é, queremos adorar algo que nos tire do deserto". Eles não queriam esperar as orientações e os planos de Deus, eles queriam um deus que atendesse suas metas (no caso, sair do deserto para Canaã). Eles não queriam uma divindade, no fundo eles queriam seguir a si mesmos.

Seguindo adiante, Arão tenta apaziguar a sede enganosa do povo com uma solução meio-termo: nem a Palavra do Deus verdadeiro, nem um ídolo pagão declarado. Ele tentou criar  algo que saciaria o povo, podendo ser carregado adiante, mas que supostamente representaria Deus o Senhor suficientemente (pelo menos ele achava que era suficiente). Como se Arão dissesse : "estou fazendo uma estátua pra adorarem, mas é de Javé o Senhor, não é idolatria a outros deuses!".

Ele monta a sua versão caseira de "Javé", acreditando que fosse possível dar louvor e sacrifícios a esse bezerro, a essa representação, e isso chegar até o Senhor. Tanto é que ele organiza uma festa a Deus no dia seguinte usando esse bezerro como figura. Matam touros, comem e bebem aos pés dele.
Porém vemos por esse texto de Êx 32, que uma representação do Senhor ainda não passará de uma idolatria, um novo deus, pois o mesmo parecendo prático, o motivo é atender nossos objetivos pessoais.

Arão não era como o povo simplório - que apesar de tudo havia visto as 10 pragas, atravessado o mar vermelho a pé e comido maná. Arão tinha sido escolhido por Deus como sacerdote e recebido ao lado de Moisés muitos sinais e ordens de Deus. Mas entre perder o controle do povão e fazer o que era certo, Arão preferiu acalmar e manter o povo satisfeito.

E o resultado vemos na fala de Josué com Moisés: parece guerra, avivamento, mas é apenas o povo celebrando a si mesmo, dizendo que é para Deus. Parece adoração a Deus (dizem que é), mas o objeto de adoração é feito literalmente com as suas vaidades somadas (os brincos de ouro, as joias, derretidas), disfarçadas de "Senhor", mas feito para atender as vontades e urgências deles, e não eles para com a divindade.

Quantas comunidades com placas de igreja, liturgia de igreja, linguajar de igreja, padecem do mesmo mal?

Quantas assembleias, presbitérios, conselhos, comunidades, denominações, líderes, têm oferecido o "meio-termo de Arão", aquilo que é dito ser Javé, Deus de Israel, ou Jesus o Filho, mas que é representado da maneira que o povo anseia, formatado pra atender o que o povo, pra ser carregado por cada um na direção dos seus próprios planos humanos e metas?

Uma teologia para consumo, um culto que te chama para vitória e conquista, ou para o absoluto relaxamento, respeitando as tuas prioridades e planos? O meio-termo de Arão vende, mantém a comunidade frequentando, arrecadando, justificando a existência da estrutura eclesiástica (corpo pastoral, liderança, templo, rotina). Afinal, como muitos pastores já se justificaram dizendo "se a comunidade fizer metade do que pedimos já vai ser um avanço". É a teologia do conforto, para ambas as partes.

É fácil condenarmos igrejas que vendem "sabonete com cheiro de Jesus", ou "vassoura ungida" e outras bizarrices. Porém por serem heresias tão grotescas, deixamos de perceber as armadilhas sutis, no alto da nossa "iluminação reformada". E como diz o ditado, o diabo está nos detalhes. E o meio-termo de Arão é sutil e venenoso.

Cuidado com o seu ouro



O meio-termo de Arão precisa de bezerros de ouro pra existir. Assim como em Êxodo, são feitos também com o "ouro" de cada um da igreja. Com o "ouro" do talento musical, ouro da oratória, ouro do carisma, ouro do marketing - sim, marketing, com toda aplicação em marcas, slogans, forças-tarefa. Todo esse "ouro" (dons e recursos) é desviado de seu propósito - abençoar e enriquecer espiritualmente a comunidade local - para ser derretido em forma de ministérios, estruturas e formatos que sustentem o "meio-termo de Arão" moderno, e que possam trazer o "Javé meio-termo"  - o deus que poderia abrir o mar, mas quer te dar o carro do ano, e te tranquilizar cheio de amor barato, no meio dos pecados de estimação. O bezerro de ouro é polido todo domingo, toda reunião - a fim de sempre refletir nossa imagem nele, pra que haja identificação e conforto.




Diferentemente do que acontece em Êxodo 35 e 36, quando os israelitas usam seus ouros e habilidades para glorificar a Deus - na construção da Tenda - aqui em Êxodo 32 fica claro que a benção virou maldição através do pecado da idolatria ao bezerro.

A primeira lição a ser aprendida é: cuidado com o seu ouro. Cuidado para que ele não vire um bezerro ou seja somado a um. Cuidado com seu ouro, pois se o seu relacionamento não for com Deus pelo que Ele é, aguardando o que Ele planeja e deseja, seu ouro pode virar um belo e maligno bezerro, pra você carregar na direção dos seus próprios sonhos. E ainda mais diabólico: achando que está fazendo "a Obra", enquanto se doa com o foco errado.

O bezerro e o buraco negro


O bezerro é levado pelos israelitas pra direção que eles queriam. É o povo que leva seu deus, e não o Deus que leva seu povo. O meio-termo de Arão, na forma de bezerro, está aí na igreja de hoje. São tantos cultos que declaram vitória, declaram guerra, proclamam o "ano da colheita", o "ano da virada". São louvores que focam no "conquistarei, vencerei, voarei, dupla honra", ou no "restitui o meu direito", ou ainda "tu me livrarás, multiplicarás". É o povo cantando pra onde o seu bezerro deve os levar. E essa canção não encontra eco com Paulo, que em tudo dava gracas e sabia viver no pouco, no muito, doente ou sadio. Mas encontra eco com os profetas desviados de Jerusalém, do tempo de Jeremias, que diziam "tudo vai bem, vamos vencer os babilônios, não haverá cativeiro e sim vitória". É a romaria do bezerro, cantando pra onde ele tem que ir.

Os bezerros têm que ter muitas formas, conforme as muitas direções de cada ego. São forjados no formato de ministérios, logotipos, programações. São feitas campanhas, levantam recursos, mudam a roupagem do culto. Consomem o ouro (recursos, dons)  que ao invés de ser abençoador, vira pedra de tropeço, vira bezerro para ter o deus meio-termo pra eu inconscientemente me ver refletido e adorá-lo, sob a desculpa de ser para o Senhor Deus.

Há ministérios cujos líderes são temidos e temíveis, que como um buraco negro distorcem toda a igreja para que o orbite e alimente-o, atraindo o resto da igreja enquanto a consome de dentro pra fora. Consome tempo, consome o emocional de membros, recursos da tesouraria, distorce os vínculos sociais e acima de tudo - tira o foco da igreja da caminhada comunitária de santidade, reverência e simplicidade. Esses bezerros de ouro ministeriais são causa de brigas, mágoas, disputas e até mesmo apostasia. Já disse Jesus: ai de quem fizer tropeçar um destes pequeninos na fé. Mas quem tem olhos e vive para o bezerro, não enxerga mais nada ao redor.

Quer saber se é bezerro ou o Senhor? veja os frutos dentro e ao redor da comunidade da igreja. Os ministérios, programações e campanhas produzem frutos de santidade, de comunhão, abençoadores e discípulos? Gera gente mais comprometida com a Palavra, ou gente empolgada e depois machucada? Ou apenas frutos meio-termo, que apenas alimentam o bezerro de ouro?
  • Encham o templo é a versão meio-termo do "Facam discípulos"
  • Sejam ocupados, ao invés de sejam santos
  • Viver a semana toda na igreja, ao invés de ser sal e luz no mundo
  • Criem ministérios, ao invés de busquem o Reino de Deus
  • Ergam obras faraônicas, ao invés de edifiquem uns aos outros e os pobres
  • Sejam fofos e arrumadinhos, ao invés de assumam os pecados uns aos outros
  • Sejam impecáveis aos domingos, ao invés de fazer tudo diariamente para Deus
A idolatria é tímida, vem sempre disfarçada: de piedade, de comprometimento, de paixão pela Obra, mas assim como um ramo de laranjeira produz laranja, mesmo seja enxertada num limoeiro, a idolatria também nunca deixa de produzir seus frutos acima citados. 

Idolatria não é apenas relacionado com a vaidade, com orgulho, mas também com aquilo que é usado e valorizado de maneira desproporcional, seja para mais ou para menos. O abuso, ou separado em suas partes: AB-USO, o uso para além do esperado, planejado.

Pode ser idolatria da liturgia, do formato de culto, seja pelo novo ou pelo antigo. Idolatria do crescimento numérico, ou de arrecadação. Idolatria de líderes e liderados, do carisma pessoal. 


Até mesmo aquilo que um dia foi benção pode ser convertido em ídolo - veja o caso da Serpente de Bronze erguida no deserto (Nm 21:8). Séculos depois, algo que apontava indiretamente pra Jesus crucificado na Gólgota, estava sendo usado como deus e recebendo adoração como Neustã (2Re 18:4), sido destruído pelo rei Ezequias.



Nem todo barulho é música, nem todo movimento é vida

Pra quem observa de longe como Josué, ver toda essa movimentação na igreja local pode pensar que é guerra, clamor, avivamento! Mas é como diz Moisés, é só celebração para si mesmos, disfarçados de piedade, de devoção. Quando olhamos o alvo dessa devoção, não encontramos o Senhor, mas uma imitação feita de vaidades fundidas e que reflete a eles mesmos. Parece o barulho de quem está no meio do Bom Combate, mas é apenas a farra do bezerro, é a festa do meio-termo.

Portanto, fique atento ao seu ouro - aos ministérios, à vida da igreja em que você congrega, se ela vive para Cristo ou se alimenta o bezerro sem se dar conta. Veja os frutos, veja os efeitos nos irmãos e irmãs, nos líderes, e em você perante a Palavra. 




domingo, 12 de julho de 2020

O caderno da morte - As fake news e o cristão

O cristão, fake news e cancelamento

 

Estamos em tempos em que a narrativa é mais importante do que o fato. Trazer a interpretação deste para o lado ideológico que gostamos é o esforço mental do momento.
Podemos dizer até que, em muitas vezes, não está sendo sequer importante ganhar a disputa de narrativas, desde que o alvoroço criado seja suficiente para derrubar ou prejudicar o partido que eu não gosto, o político que eu desprezo. "Tanto faz se é verdade ou se está distorcido, desde que o(a) político(a) A seja prejudicada".



Junto a esse pacote está a cultura do cancelamento, a busca incessante de certos grupos ativistas - ou de pessoas simpatizantes - em esmiuçar a vida virtual (e às vezes, a real) dos desafetos político-ideológicos até que se ache algo com o qual possam criar muito barulho, tanto barulho que possam chamar a atenção do público, das marcas e patrocinadores a fim de romperem e isolarem socialmente a pessoa-alvo. Acabam por marginalizá-la.

Ironia completa é que muitos destes grupos são abertamente contra o preconceito, defendem os marginalizados da sociedade, e que vários deles não sobreviveriam ao mesmo tipo de escrutínio virtual. Aliás há muitas pessoas que começam a discordar desses movimentos, e acabam provando do próprio aparelho venenoso que ajudaram a montar.

Mas isso não é novo. Porém precisamos nos perguntar como essa cultura das "fake news", as notícias falsas/distorcidas se encaixa (ou não) com o Reino de Deus. Quem assume-se cristão pode participar deste tipo de atitude? essa pergunta é importante porque daqueles que não são "do Caminho", podemos apenas torcer pelo melhor, mas não esperar alguma busca por coisas do Reino.

Dando uma olhada no passado

A bíblia não previu os smartphones nem a internet (por onde essas fake news operam), mas ela fala desde sempre sobre a natureza humana, e o que as pessoas são capazes de fazer para defender seus interesses e ideologias.

No quesito do julgamento e condenação coletiva, a primeira ligação que fazemos é com a mulher adúltera que é trazida (Evangelho de João cap 8) até o meio do pátio do templo, onde várias pessoas ouviam os ensinamentos de Jesus desde o começo da manhã. Os fariseus e líderes judeus a obrigaram a ficar de pé no meio de todos, expondo ela à vergonha e a censura coletiva. Isso já nos diz muito.

A condenação da adúltera era um detalhe. Uma ferramenta. A exposição dela foi apenas para botar pressão popular em Jesus, criar uma platéia, por um holofote com microfone e dizer "e aí Jesus, cumpre a lei e mata, ou vai passar a mão e ser conivente com o pecado?".

Jesus deixou claro: se vocês acham que vão passar no crivo que vocês evocaram? vocês sobrevivem à lei de Moisés se forem colocados no lugar dela? Contra esses religiosos a crítica de Jesus era muito mais feroz: eles não eram apedrejados poque disfarçavam seus pecados e desejos impuros com um manto de religiosidade. Mas eram verdadeiros "sepulcros caiados, podres por dentro, com uma aura branca por fora". Eles não eram assassinos, mas odiavam. Não adulteravam como a mulher que arrastaram, mas devoravam as mulheres com os olhos. Nunca seriam pegos como ela foi, mas Jesus os pegou também em flagrante várias vezes olhando o coração.

Em momento algum ele "passa pano", faz "vista grossa" para o pecado dela. Ele mesmo a repreende depois: vá e não peques mais. Ele confirma que ela estava em pecado também.

Se você não passaria no mesmo escrutínio, na mesma "investigação", então não participe de uma.

A turma dos religiosos citados - e a turma do cancelamento de hoje - tem exacerbado aquela tentação humana de "ser a mão de Deus, punindo o mal em nome do bem maior". Mas o Bem Maior (Deus) não enxerga-os fora da categoria de maus. Pois todos pecaram, todos estão nus e sujos diante do Absoluto, do perfeito, e não há quem se salve. A diferença está não na qualidade mas na quantidade de pecados e consequencias.

Um dos exemplos mais emblemáticos de fake news e cultura do cancelamento está relacionado com a morte de Jesus, nas passagens do Novo Testamento que narram sua busca, prisão e execução. Quando lemos os 4 evangelhos, percebemos um retrato claro de que os líderes judeus, os sacerdotes e mestres da lei eram um grupo político-religioso poderoso e que mesmo se dizendo mediadores com Deus, se comportavam contrários ao Reino de Deus - pra isso sugiro que se você ainda não viu, dê uma olhada nos últimos posts sobre o cristão como cidadão e em especial, sobre como os verbos importam.

Ao longo dos evangelhos, vemos que essa classe político-religiosa citado era ativa em buscar algo com que incriminar ou desmerecer Jesus, com perguntas maliciosas, não raro em público, fazendo observação de cada movimento e atitude dele. Ao invés de buscarem sua própria santidade, buscavam algo de a ser distorcido em Jesus. Por isso essa atitude pró-ativa em caçar "pêlo em ovo" a fim de prejudicar alguém, não condiz com a mentalidade do Reino. Se é algo típico do grupo de líderes político-religiosos narrado, então eu como cristão devo evitar imitar e replicar. Afinal eles embora se digam religiosos, estão operando a favor dos poderes da escuridão (Lc 21:53).

Diga-se de passagem que quem fica ao redor esperando sorrateiro algum deslize ou falha para atacar é o diabo (1 Pe 5:8), enquanto que Jesus estava atento às necessidades dos outros, suas doenças e barreiras, para os curar, advertir, consolar.
Então começaram a vigiar Jesus. Pagaram alguns homens para fazerem perguntas à ele. Eles deviam fingir que eram sinceros e procurar alguma prova contra Jesus. Assim os mestres da Lei e sacerdotes teriam uma desculpa para o prender e o entregar às autoridades (Lc 20:20)
Se esse trecho acima não te faz lembrar algo dos dias de hoje, nada fará! Nos nossos dias há de todos os lados do espectro político e ideológico patrulhas fazendo exatamente o mesmo. Vigiando os outros. Financiando secretamente o compartilhamento de acusações em público. 

Perceba que essas pessoas, assim como o grupo religioso narrado, vigia os outros 24h mas não vigia a si mesmos. Escrutinam com pente fino o outro mas não os próprios pecados, defeitos e maldades (Mt 7:3-5).
Vigiam o outro não para o proteger ou para aconselhar, mas para prejudicá-lo, de preferência acabar com sua vida (Lc 22:2).
Financiam a difamação, o deboche público, mas não os necessitados.
Financiam até mesmo grupos armados, milícias ou vândalos para irem atrás coagir (Mc 14:43).

Depois de terem prendido Jesus, esse grupinho continuou seguindo o mesmo caminho, para ter certeza de que Jesus seria condenado e morto pelo Estado romano.



Frente a Pilatos, governador da Judéia, eles se prontificaram a ir acusá-lo falsamente (Lc 23:1-2, 5). Depois repetiram o mesmo com Herodes Antipas, governador da Galiléia, que estava na região nessa época (Lc 23:10). Dar falso testemunho e mentir são pecados contrários à Lei dada por Moisés. Mas na sua ânsia de "cancelar" Jesus, o grupo passou por cima da Lei que eles mesmos defendiam tão ferrenhamente. Esse tipo de gente persiste até os dias de hoje, passando por cima dos próprios valores se preciso for, para atingir seus desafetos, quem eles desejam destruir (Mt 26:59-60).
Muitas vezes essa sede de "queimar o filme" é tão grande que as estórias começam a divergir entre si, de tão fake (falso) que as news (notícias) são (Mc 14:56).



Vendo porém que as autoridades não decidiram a seu favor, e não conseguiriam "terceirizar o assassinato" nas mãos do Estado, o grupinho da escuridão muda de estratégia. Passa a inflamar a multidão (Mc 15:11, Mt 27:20), e estimular o poder popular a cometer a injustiça que eles não tinham coragem de terminar - embora tivessem planejado e financiado tudo. Hoje também temos aqueles que ficam nos bastidores estimulando a massa, o público, contra seus alvos político-ideológicos. Contratam bots (softwares), contas falsas, pagam influenciadores, criam campanhas virtuais e #hashtags. Criam marketing pessoal dizendo "se você é do bem, tem que aderir à nossa campanha".

E neste momento, tanto faz se o alvo é justo ou injusto, o importante é o barulho e não a razão. Pilatos e Herodes não acharam culpa em Jesus (Lc 23:13-15), mas graças à semente maligna plantada pelo grupo na multidão, o plano de morte foi concretizado.
Pilatos tentou argumentar, mas a multidão inflamada respondia cada argumento com mais alvoroço e gritos mais altos de "Crucifica!".

E no final quem é solto é Barrabás, preso entre outras coisas, por liderar revoltas na região (exatamente o que acusaram Jesus de ter feito).

Depois de plantado o "cancelamento em massa", a situação segue no piloto automático como uma avalanche. Não dá mais para voltar atrás. O povo quer ver o sangue. O povo quer a morte como espetáculo (Lc 23:48) - e como diz a Bíblia, "a gritaria deles venceu" (Lc 23:23).

Algo que é preocupante é justamente o barulho vencendo a razão. Hoje muitos grupos organizam-se para fazer o mesmo contra seus adversários políticos, ideológicos ou contra o que eles julgam ser errado ou injusto, pressionando empresas, patrocinadores, marcas, a seguirem sua agenda. Não porque elas entendam que a causa é justa, mas porque eles ficam com medo de perderem prestígio dos consumidores. Essa pressão popular joga com a pior parte do capitalismo: o dinheiro antes de tudo. Para não perder capital imaterial (a força da marca, a popularidade) e com isso, vendas de produto e perda do valor das ações na Bolsa, essas marcas cedem e queimam, marginalizam e isolam seus financiados e patrocinados. A gritaria venceu.

Nem depois de morto deixaremos ele viver

Mesmo depois da morte na cruz, o grupinho seguiu seu assassinato de reputações. Foram de novo até Pilatos no dia seguinte, pedindo para haver uma vigia do Estado sobre o corpo de Jesus, "para que as mentiras dele não sejam reforçadas a seu favor". Isso tem muito eco nos dias de hoje, em que várias patrulhas de lados distintos buscam formas de silenciar seus opositores, se possível com ajuda do Estado, em prol de "preservar a verdade e proteger a sociedade". A censura velada ou aberta é sempre perigoso. Jesus não censurou nenhuma das perguntas maldosas e das armadilhas verbais dos fariseus, dos saduceus e outros que se aproximavam. Ele tampouco combateu os boatos a seu respeito - uns diziam que ele era Elias, outro Jeremias, mas apenas alguns sabiam que era Filho de Deus. Ele também não rebateu as acusações falsas dos religiosos frente a Pilatos.

Mesmo tendo dado Jesus como morto, o grupinho seguiu assassinando a reputação de Jesus. Agora, subornando os soldados que viram os fatos sobrenaturais no túmulo (Mt 28:4), para darem falso testemunho dizendo que o corpo de Jesus tinha sido roubado pelos discípulos (Mt 28:11-13) e se dispondo a darem eles mesmos, os mestres da lei e sacerdotes, falso testemunho perante as autoridades (verso 14 e 15).


No mundo dos mangás e animes, existe uma série chamada Death Note (o caderno da morte), em que o protagonista encontra um caderno sobrenatural, em que todo nome que fosse escrito ali seria assassinado. Esse caderno pertencia ao demônio Ryuk, uma espécie de espírito da morte e do suicídio. Temos que ter cuidado para que, com as nossas atitudes, não estejamos assassinando pessoas indiretamente, aparentemente "sem sujar as mãos". Que não estejamos escrevendo o nome delas no "caderno da morte" de maneira inconsciente, e muito menos de maneira voluntária!

Conclusão

Por isso essa cultura do cancelamento e as forças-tarefa de boataria e difamação não tem nada a ver com o Reino de Deus e com a postura de Jesus. Pessoas são prejudicadas por atitudes muitas vezes legais (pela Constituição), seja em vida (arruinando-a) ou em morte (manchando sua reputação, derrubando estátuas e corrompendo biografias).



Você como cristão, não repasse, não participe e não reforce os movimentos de "cancelamento" ou de "queimação de filme". Não levante #hashtags e nem envie por whatsapp as "notícias que estão sendo escondidas". Esqueça mensagens que começam como "agora o povo acordou!",  "agora a cobra vai fumar", e afins.

Veja Jesus em João cap 8, no episódio da mulher adúltera: o grupinho traz e arma um espetáculo para ele condenar, chancelar o veredito e até mesmo pegar uma pedra também. E Jesus continua calado, ignorando a turma do linchamento, ficou escrevendo no chão. Eles ficaram insistindo muitas vezes. Ele deixou claro: se vocês acham que passam no mesmo crivo que pregam, se são perfeitos, vão e façam. E voltou a escrever no chão. Jesus não 'bateu tambor pra maluco dançar". Não deu Ibope para o justiçamento coletivo.

Não se deixou animar em ser "a mão de Deus" fazendo justiçamento, condenação.

Se dizemos (com razão) que cristão não pode apoiar tortura, já que Jesus sofreu com isso em sua morte, também não podemos apoiar qualquer movimento de inflamação popular, boatos, fake news e cancelamento de pessoas, pois foi esse o instrumento de sua condenação, mais do que a tortura!

Não gaste o seu tempo buscando trincas na santidade alheia, pois elas existirão sempre no outro - e imagine só, em você! todos pecamos e carecemos juntos da misericórdia de Deus. Se buscarmos nos seus históricos de internet, nas conversas de celular ou nas coisas que você pratica, será que você passa no mesmo crivo que usa com os demais? Lembre-se que diante de Deus, você só dará conta das suas trincas e falhas, então porque não cuidar só delas? 

Não gaste tempo e dinheiro financiando fake news, torcendo pela exposição do outro, mesmo que ele pense diferente de você. Foque na sua santidade e no bem do próximo. Ore pelos seus inimigos, pelos políticos e pela nação, como já comentamos no Cristão como Cidadão.

Gaste tempo com o bem, pois o mal com o tempo cancela a si mesmo.


domingo, 28 de junho de 2020

Os verbos importam

Os verbos importam

Verbos indicam ação, movimento, atitude. Algo feito por alguém internamente (como sentir, desejar, amar ou odiar) ou externamente (pegar algo, sentar-se, etc).  Aprendemos a conjugar estes verbos na escola, nos cursos de idioma, nas velhas tabelas:



Nossas ações, os verbos que tomamos interna e externamente, são muito importantes. No Reino de Deus, somos chamados a prestar atenção no que fazemos (externo) e no que pensamos, nutrimos por dentro (interno). E antes de tudo, somos convocados a viver em verdade - aquilo que está interno, seja refletido externamente. Que o nosso "Sim" seja verdadeiro, autêntico, tanto quanto nosso "Não". Sem hipocrisia. Aliás, hipocrisia significa em grego "uma decisão/escolha escondida", também fazendo menção aos atores gregos, que usavam máscaras durante a encenação.



O verbo atribui ou reflete aquilo que o sujeito da frase é

Jesus é o salvador porque ele nos salvou.
Aquele que mata, é assassino, homicida. 
O mentiroso é assim chamado porque mente.
Só é seguidor quem tem sua vida focada em SEGUIR a Jesus.

Deus o Pai é definido muitas vezes usando-se de verbos (em hebraico): Jeová Jirê (o que provê), Jeová Rafá (o que cura), Jeová Shalom (o que dá a paz), Jeová Macadeshem (o que santifica).

Jesus é citado por João em seu evangelho, como O Verbo. O Verbo se fez carne e habitou entre nós. Aqui João está focado em apresentar o evangelho em uma linguagem que combatesse a seita dos gnósticos. Quando ele usa o Verbo, em grego ele usa o Lógos, que de maneira muito simplificada, é um conceito da filosofia grega antiga, que significa o princípio último, criador a partir do qual o universo foi feito e todas as coisas são derivadas. Esse assunto é longo, rico, e aprofundá-lo não é o foco neste artigo.

Quando olhamos os registros bíblicos, sempre buscamos ver as atitudes dos sujeitos narrados ali. O que disseram, fizeram, e assim temos uma referência para nossa reflexão. Somando-se a isso o fato de Jesus ser O Verbo, proponho darmos uma olhada nos verbos praticados por aqueles que estavam com Deus, e os verbos daqueles antagonistas relatados na Bíblia.

Em 2 Cr 7:14, Deus estabelece uma aliança de verbos com seu povo, conversando com Salomão. Ele exige que seu povo sempre busque :
  • Se ARREPENDER
  • Se HUMILHAR
  • ABANDONAR seus pecados
  • ORAR
Então Ele o Senhor irá reagir com seus verbos. Ele irá:
  • OUVIR (as orações)
  • PERDOAR
  • SARAR (a terra)
Em adendo a estes verbos, em outros trechos aparecem outros verbos associados aos que temem a Deus e seguem a Cristo:
  • Suportar (a aflição, a injustiça, a perseguição)
  • Dar suporte (ao próximo, aos inimigos, a quem é vulnerável)
  • Perseverar (na fé, apesar dos sofrimentos)
  • Obedecer
  • Atentar-se (a si mesmo e aos demais ao seu redor)
  • Cuidar
  • Socorrer (física ou materialmente) alguém
  • Admoestar
  • Exortar (com respeito e carinho, como a um familiar querido)
  • Denunciar (o pecado, a injustiça, o erro, a fim de livrar alguém da morte)
  • Interceder
  • Confessar (a Deus e uns aos outros como irmãos)
  • Negar-se (a si mesmo)
  • Temer (a Deus)
  • Confiar (em Deus)
  • Pregar, compartilhar o evangelho
E o mais importante de todos: AMAR (a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a mim mesmo), o verbo essencial (1 Co 13).

De semelhante modo, existem vários verbos que estão intimamente ligados com os inimigos de Deus, ou com pessoas que Deus condena ao longo da história bíblica. São ligados a uma outra natureza, que não é promotora do Reino de Deus.
  • Matar
  • Roubar
  • Destruir (Jo 10:10)
  • Acusar (o diabo é o grande acusador, Ap 12:10) Zc 3:1
  • Enganar
  • Disfarçar-se de bom, sendo mau (2 Co 11:14)
  • Mentir ou dar falso testemunho (Jo 8:44)
  • Pecar (1Jo 3:8, e Ef 4:26-27)
  • Ameaçar, fazendo tocaia, cerco, terror (1Pe 5:8-9)
  • Induzir alguém ao erro/pecado - Mt 18:6,7
  • Trair ou induzir alguém a trair (Jo 13:2)
  • Tentar, provocar (alguém) - Mt 4:1
  • Incendiar (pessoas, nações) em revolta - Ef 6:16
  • Revoltar-se (contra as autoridades, criar revoltas) - o diabo foi o primeiro revolucionário, levando consigo 1/3 dos anjos rebeldes.
  • Agredir (usar da violência)
  • Humilhar (o outro, não a si mesmo)
  • Orgulhar-se, envaidecer
  • Odiar (pois quem odeia é assassino - 1Jo 3:15)
Veja que nenhum destes verbos consegue ser associado à pessoa de Jesus, ao seu coração manso e simples. Juntando todos esses verbos, temos uma pessoa que mais parece um animal selvagem, perigoso e indomável, mortal. Aliás, muitos deles são abertamente associados com o Diabo, como matar, roubar, destruir, mentir, acusar.

Sendo assim, nós os cristãos, temos que manter nossa vida sendo movida, agitada pelos verbos da primeira lista, e não desta última, fugindo de quaisquer convites ou propostas que os contenham.

Pare, e pense sobre os frutos das suas ações, das bandeiras que você defende, das atitudes que você tem influência - elas produzem morte, destruição, difamação, roubo, agressão, revolta, depredação, ódio? ou todas estas coisas estão camufladas sob o aspecto de um "anjo de luz", como se estas fossem "consequências indesejadas" de uma causa nobre?

Mesmo dentro das igrejas essa lista pode ser diabolicamente camuflada, como desde os tempos de Jesus já o era. Ministérios que louvam, mas matam, difamam, traem, humilham os membros. Há sepulcros caiados, verdadeiros diabos travestidos de anjos de luz pelas igrejas mundo afora, gerando dor, má fama para o Reino e criando uma massa de "desigrejados" machucados pela própria comunidade que devia curar. 

Mas e a motivação do verbo, entra onde?

Nos registros bíblicos, vemos que a motivação (os verbos internos, que revelam a verdadeira intenção) são primordiais para avaliar o que se mostra por fora (os verbos externos, visíveis).

Vemos que até mesmo um verbo da "lista boa" pode acabar sendo mau, quando na verdade internamente o resultado esperado é outro.

Um fariseu orando em voz alta, é denunciado por Jesus como alguém que não esperava ser ouvido por Deus, mas pelos homens. Jesus diz que esse fariseu já recebeu o que queria (atenção e prestígio dos outros, como se ele fosse muito devoto). O mesmo se dá quando o religioso dá esmolas publicamente. 
Jesus denuncia também os religiosos que "consagram coisas a Deus" ao invés de ajudar seus próprios pais. Dão dízimo até das ervas mas se esquecem do pobre.

Uma ação "boa" externamente, com a motivação interna ruim, ou dissociada de um interior santificado, é reprovada por Deus, tornando a pessoa em um "sepulcro caiado", um túmulo que por fora é branco como se pintado por cal, mas por dentro é podre, sujo.

Obviamente que uma ação ruim é ruim em qualquer caso, independentemente da motivação, pois "é do coração que procedem todas as maldades" (Mt 15:19, Mc 7:21).

O mesmo vale para as não-ações. Abster-se de uma ação externa não significa estar correto diante de Deus. Não trair fisicamente, mas olhar com desejo, é exposto por Jesus como sendo a mesma coisa, apenas terá consequências diferentes aos envolvidos. Não matar mas odiar uma figura ou pessoa, é o equivalente de homicídio para Deus, a diferença está apenas na lei dos homens.

Assim como deixar de fazer o bem é contado como pecador (Tg 4:17).

Nossos verbos contam muito, e somos convidados a conjugar o Reino de Deus onde quer que estejamos, para que o mundo possa por alguns minutos de convivência, enxergar um pouco dO Verbo, e irem atrás da Verdade.




quinta-feira, 18 de junho de 2020

O cristão e a violência


O cristão pode ter atitudes violentas?



Essa é uma pergunta que surge nos dias tumultuados que vivemos. Primeiro, se você não viu ainda, dê uma olhada no post sobre O cidadão Cristão no mundo.

Nós somos diariamente convocados para a violência pelo nosso entorno. A mídia, os filmes, os jornais, há uma glorificação constante da agressividade.

Há situações em que somos incitados a agir de forma violenta, seja por uma reação natural do nosso ser caído, ou por termos aprendido que é uma resposta válida e "natural". Porém a Bíblia nos ensina que aquilo que consideramos reação "natural" humana, é a maioria das vezes fonte de pecado e não uma fonte de virtude.

Do nosso post anterior podemos tirar algumas lições previamente conversadas: o cristão deve buscar estar em paz com todos, ser educado e respeitar as pessoas, sendo agradável e operar dentro da lei, respeitando as autoridades.

Obviamente esse perfil não comporta atitudes violentas e bárbaras, mas mesmo assim deixei esse aspecto para um estudo separado aqui. Lembrando que violência não é só física mas também verbal, é agressividade no ser. Tem casais que nunca encostaram a mão violentamente um no outro, mas se corroem e se envenenam com atitudes agressivas e falas ácidas. Estão matando um ao outro, enquanto matam a si mesmos por dentro.

Como exemplo, temos também pessoas "cristãs", espiritualizadas, tanto o "cidadão de bem" como o "desconstruído" se manifestando publicamente em redes sociais com posturas que pouco combinam com Jesus, embora ambas o utilizem para se justificarem.


Compilado de versículos

Nossos tempos são difíceis e faz tempo que os tempos são assim, desde Paulo:


No fim dos tempos haverá tempos difíceis - muitos serão egoístas, avarentos, orgulhosos, xingadores, ingratos, desobedientes, sem respeito pela religião, sem amor mútuo, duros, caluniadores, incapazes de se controlarem, violentos e inimigos do bem. Serão traidores, atrevidos e cheios de orgulho por isso. Vai haver até aqueles que parecem cristãos mas não são de verdade, mas usam disso para realizar seus desejos e ambições. Não devemos imitar esse tipo de gente, se formos cristãos.
Vamos fazer como no post sobre cidadania cristã, e compilar aquilo que é dito na bíblia, em especial no NT, Salmos, provérbios e eclesiastes. Todas as referências estarão aqui para você mesmo montar o quebra-cabeça verso a verso.

2 Tm 2:23-25; 2 Tm 3:1-5; Rm 12; Rm 13; Ef 5:22-32; Pv 27:4; Sl 59:6,14; 1 Ts 2:14; Sl 64:3-6; Pv 1:11-19; Pv 10:23; Sl 11:5; Sl 2:1-2; 1 Pe 2:11-18; 1 Pe 4:10:15; 1 Co 14:33; Pv 20:3; Pv 20:22; Pv 15:1; Pv 22:24-25, Pv 24:2, 11-12, 29; Pv 25:21; Pv 30:10, Pv 25:9, Pv 26:20; Pv 26:18-19; Sl 73; Sl 17:4; Sl 62:10; Sl 35 ; Sl 37; Jó 1:15


  • Ficar longe das discussões, pois acabam sempre em briga. O cristão não deve andar brigando, mas tratar a todos com educação, ser paciente, e corrigir com delicadeza aqueles que são contra ele, tratar com respeito o contraditório. Qualquer idiota pode começar uma briga, mas o sábio, o que teme a Deus é elogiado por se desviar e evitar as brigas.
  • Abandonar a prática de xingamentos, gritarias, insultos, acessos de raiva, inimizades, palavras destrutivas, de ódio mútuo.
  • Não nos vingarmos de ninguém, nem retribuir o mal com o mal. Paguem o mal com bem, deixando a violência e a vergonha toda do lado inimigo. A vingança e a retribuição dos maus é um direito de Deus o Senhor, não nossa. Não somos justos para nos fazer de flagelo de Deus.
  • Apesar de ser uma reação "natural" humana, não devemos cultivar a raiva, nem se deixar dominar por ela, ou deixar que ela produza através de nós pecado, para não dar chance ao Diabo nem entristecer o Espírito Santo que habita em nós. Pois a raiva humana não é capaz de produzir o que agrada a Deus, não é capaz de operar justiça de Deus. Pois o ódio é cruel e destruidor. Logo acessos de raiva não são capazes de construir.
  • Temos a honra de dar testemunho vivo e não podemos trazer desconfiança ao evangelho por mau comportamento. Se sofrermos, que seja por fazer o bem, e não por sermos assassinos, ladrões, criminosos ou se meter na vida dos outros.
  • Não devemos viver nas sombras, às escondidas, nossas ações são da luz e para serem vistas por todos à luz do dia. Nós assumimos o que falamos de cara limpa, mesmo que isso implique em perseguição política ou social por sermos cristãos. 
  • Portanto não devemos participar de ajuntamentos secretos, grupos que planejam atacar esse ou aquele, tramam armadilhas, planejam revoluções, assassinam reputações com difamações e calúnias. Grupos que saem pela cidade nos momentos vulneráveis, espumando e cercando, gritando xingamentos e ameaças, como cães raivosos, buscando o que devorar. Essas pessoas fazem isso achando que estão anônimas, que ninguém está vendo e que seus crimes serão impunes.

    • Esses grupos levam o terror, e o terror é próprio dos maus. E o Senhor abomina os maus, detesta aqueles que gostam da violência, o ódio brota daquilo que eles planejam. Eles semeiam a confusão e nosso Deus não é Deus de confusão e sim de paz. Os revoltosos estão sempre criando problemas, os que gostam de brigas, os que tramam revoluções, os que se cobrem e protegem com violência, confiam nela, porém a morte vai ativamente atrás dessas pessoas.

    • Um desses grupos ataca a fazenda de Jó, a mando do próprio diabo. Um grupo de pessoas assim vem para prender Jesus (Mt 26:47).
  • Devemos desviar a fúria, evitar as discussões e desviar das brigas usando palavras brandas, sabendo que antes que as coisas piorem, devemos parar logo quando começam os sinais, como uma pequena rachadura que prenuncia a barragem pronta a explodir e trazer morte e destruição.
  • Até mesmo brincadeiras estúpidas tipo 'pegadinhas', trotes e afins devem ser evitados, pois é brincar com o perigo e com o sentimento do seu próximo.
  • Devemos evitar andar com essas pessoas violentas, agressivas, grosseiras, para que não acabemos nos tornando como elas. Pois quando o sábio se permite ser violento, acaba se tornando idiota. Não devemos repetir as atitudes do violento.
  • Devemos entregar nossa causa ao Senhor, entregando a Ele a justiça, a vingança, sem se aborrecer, sem ficar com raiva ou furioso, mesmo em face de soberanos cruéis, violentos, opressores dos pobres. Aqueles que são fiéis a Deus, são generosos e buscam o bem, por isso não serão desamparados.


Nem só de proibições (não faça), mas também de obrigações (faça)

Ao mesmo tempo que somos chamados a desviar da violência, somos chamados para ativamente proteger o vulnerável, e salvá-lo das mãos do violento, da humilhação ou da opressão (Sl 24:11-12), sem poder fingir que eles não existem, e de que "não é problema nosso". Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus.

Aqui somos claramente chamados a salvarmos o vulnerável da agressão iminente, da humilhação em andamento, da morte certa dos violentos. Mas salvar o fraco não é agredir ativamente o violento. É conter a ação para livrar quem está sendo oprimido.
Existe uma diferença sólida entre conter uma pessoa violenta e ataca-la violentamente.

Somos chamados a uma defesa, para podermos escapar e sair da situação de violência, não para aumentar a situação de violência. Esse salvamento pode inclusive ser não-físico, como pagar a dívida daquele que seria morto, ou negociar com os recursos que Deus nos deu, para dissuadir o agressor, para desviar do violento.

Em nenhum momento somos convocados pela Palavra a batermos de frente com o violento, a imitar suas táticas e seus grupos. Devemos pacificar, desviar e até mesmo suportar. Fazer resistência é diferente de atacar. Não existe agressão preventiva no Reino de Deus, ou para seus cidadãos.

Mas e o Jesus violento ?


Principal cartaz dos dois lados políticos, vamos falar do "Jesus violento". Libertário, revolucionário.
Aquele que entrou no templo, e fazendo um chicote de cordas, atacou os cambistas, vendedores e animais de dentro do templo. Um momento que nos dá autorização de usar de violência, ignorando toda a compilação acima, se for "em prol de um bem maior, de uma causa justa". Será?

Para ter uma ideia ampla e mais completa do texto, precisamos antes olhar para outros trechos da bíblia e ver como Jesus lidou com a violência e com os poderes seculares em vigor - e não era qualquer um, era o Império Romano!



De Pedro e de louco...


Jesus na noite em que foi preso, é recebido com um bando armado, enviados pelo chefe da sinagoga (Mt 26:47). Os discípulos vem para reagir com igual violência (v. 50 e 51), e Pedro chega a cortar a orelha de um deles, mas Jesus repudia a atitude, pois 
Guarde a espada! Os que vivem pela espada [ou a empunham], morrerão pela espada. Ou você acha que eu não posso pedir ao meu Pai que me mande doze legiões de anjos imediatamente?E curou a orelha de Malco. (Mt 26:51, 52,53)
Há aqueles que dizem que essa atitude de repudiar uma resposta violenta é uma exceção, já que ele precisava passar pelo suplício, pela cruz, como é dito no verso seguinte (Mt 26:54). Como "se essa exceção fosse permitida apenas por fazer parte da Obra Salvífica, senão seria lícito eles revidarem".

Mas não é uma leitura correta. Há dois motivos pelos quais Jesus age como retratado nos momentos da prisão com Judas, e não é apenas para se permitir ir para a cruz.

1) Jesus não ratifica, não chancela os frutos da violência cometida. Ele se aproxima e restaura, cura, o que seus próprios discípulos haviam semeado com agressão.

2) ele manteve a sua atitude não-violenta pois precisava dar o exemplo para os discípulos ali e nós os discípulos que viriam. "Quando foi insultado, não respondeu com insultos. Quando foi agredido, não ameaçou, mas pôs sua esperança em Deus" (1 Pe 2:18-23, ênfase no 21-23). O próprio Jesus nos disse que seríamos afligidos por sermos seus discípulos, que haveria perseguições e violência contra nós. Portanto ele precisava mostrar em si mesmo como reagir a isso.

Portanto, Jesus não "deixou barato" porque precisava ser levado para a Cruz, mas também porque precisava mostrar como devemos reagir. 

E que mesmo aqueles que andavam ao seu lado estavam sujeitos a sua natureza violenta e deveriam se conter. Ninguém teve melhor professor do que Pedro.

A matemática que reflete a essência

Em Mt 5 no famoso Sermão da Montanha, Jesus traz algumas lições a mais para nossa lista:

Não basta não matar fisicamente. Aquele que odeia o seu irmão, que nutre raiva é culpado - tanto quanto alguém que não trai fisicamente é adúltero ao olhar com desejo para outra pessoa. Enquanto as consequências são menores (os dois atos não foram consumados), o pecado é o mesmo perante Deus.

Não devemos retribuir olho por olho, na mesma medida e com as mesmas ferramentas (v. 38).

Dê mais do que lhe pediram, seja por necessidade ou por extorsão (v.39, 40, 42). Mesmo que um soldado estrangeiro te force a algo, faça além, faça melhor espontaneamente. 
Surpreenda até mesmo seu opressor (v. 41).

A aritmética do homem é olho por olho. É cumprir 1 quilometro se foi mandado marchar 1 quilometro. É dar pagamentos positivos a quem depositou coisas positivas. Essa matemática apenas reflete o que o homem é, e sabemos que nem o que foi combinado os homens costumam cumprir entre si.

Mas Jesus nos ordena a usar a matemática "trouxa" da Graça, dando a quem não semeou, retribuindo o que não foi oferecido. Pois isso vai refletir algo além do homem, vai refletir quem o Pai é - pois não é natural do homem, vai gerar estranheza a quem vê, e essa estranheza desperta a curiosidade. E porque foi isso que nos foi feito pelo Pai por nós. Essa matemática furada vai se conectar com a parábola do cobrador impiedoso (Mt 18:21-35), como um exemplo negativo daquele que quer cobrar agressivamente R$ 1 ao ter sido perdoado de R$ 1000.
Ao mesmo tempo temos um exemplo positivo em Lc 16:1-13, a parábola do administrador infiel, que vendo que não passaria no crivo contábil, que não sobreviveria ao "olho por olho" junto ao seu patrão, tratou de agir com perdão e graça com os devedores.


"O reino de Deus é conquistado à força"

Uma outra passagem é usada para defender que a implantação do Reino deve ser feita aceitando a imposição e força:

Mt 11:12 - Desde os dias de João Batista até agora [Jesus falando] o Reino de Deus é tomado à força, e os que usam de força se apoderam dele.

Existem várias interpretações quanto aos elementos destacados em azul acima, no original em grego do NT. Porém nas 4 possibilidades de interpretação, não há espaço para violência, e sim que conforme o Reino avança, o mundo é quem oferece resistência violenta. Não a igreja, o mundo! 

Para não estender muito, para quem quiser uma análise mais técnica desse trecho, deixo um link que acho bem ilustrativo: 





Limpando o templo


E chegamos finalmente ao trecho mais polêmico. Primeiro vamos olhar o trecho isoladamente. Depois vamos olhar ao entorno, no que veio antes e depois na bíblia.

O trecho de Jesus fazendo essa limpeza no templo (em inglês é referido literalmente como "Jesus on temple cleansing") está nos 4 evangelhos: Jo 2:13-22; Mt 21:12-17, Mc 11:15-19, Lc 19:45-48. Apresento um condensado dessas passagens abaixo. Algumas falas de Jesus só aparecem em um autor e não em outro.


Um pouco antes da Páscoa judaica, Jesus vai ao templo em Jerusalém. No pátio do templo havia vendedores de bois, ovelhas, cabras, pombas, e os cambistas, que trocavam moedas de outros reinos (por causa dos estrangeiros que vinham para a Páscoa). Isso era previsto na lei de Moisés, para ajudar quem vinha de longe a não ter suas ofertas vivas prejudicadas (bois, dízimo da colheita de vegetais, que secariam), conforme Dt 14:24-26.
Fez um chicote de cordas e expulsou as pessoas dali, os que vendiam e os que compravam, e todos os animais como ovelhas, bois, etc. [Esse trecho pode ser traduzido também como "expulsou todos os animais, tanto ovelhas como bois"]
Virou as mesas derrubando as moedas pelo chão, e disse aos que vendiam pombas- Tirem tudo isso daqui - e derrubou as cadeiras dos vendedores de pombas [aqui uma nota: os bois e ovelhas expulsos poderiam, assim como as moedas, serem facilmente ajuntados pelos donos depois de enxotados. As pombas não, pois voariam. Jesus respeitou a propriedade alheia, apenas "deslocou" todos eles de lugar].
Então Jesus bradou:-Parem de fazer da casa de meu Pai um mercado!-A minha casa será chamada Casa de Oração! Mas vocês a transformaram em um esconderijo de ladrões!
Os líderes judeus foram tirar satisfação: Com que autoridade você fez isso? [aqui suponho que com certa ameaça física, para justificar a resposta de Jesus na sequência, falando de seu corpo, sua integridade física].
E Jesus responde: -Destruam esse templo, e eu o reconstruirei em 3 dias!
Depois disso os sacerdotes começaram a tramar um jeito de matar Jesus, longe dos olhos do povo, que o admirava.

Algumas considerações importantes: 

A compra e venda de animais era lícita, pela lei de Moisés, para aqueles que moravam longe. Se você era seguidor do judaísmo mas não morava em Jerusalém, ao menos 1x por ano deveria ir até lá dar o dízimo do que Deus te deu. Mas ao viajar com bois, carroças com alimentos e afins, o produto se estraga (e não seria aceito pela Lei) e há risco de roubo. Ou o animal (bois e ovelhas) poderia se machucar no trajeto e Deus não aceitaria pela Lei um animal defeituoso ou machucado. Portanto a Lei permitia vender essas ofertas de animais e colheitas na sua cidade, e levar o dinheiro para o templo em Jerusalém, para comprar lá o que precisa ser ofertado (Dt 14:21-29).

Para que Jesus estivesse tão bravo com algo que a Lei permitia, era porque não estava acontecendo com boa intenção, seja da parte dos vendedores (extorquindo com preços altos, ou com câmbios exagerados), seja dos compradores (que poderiam ser da região mesmo e por falta de zelo, de piedade ao longo do ano todo, deixavam para comprar a oferta na última hora, pra cumprir tabela, cumprir a obrigação, e não como culto). Ou ainda - e essa é minha impressão - de que isso era um sintoma de um desvio mais profundo que estava instalado no Templo e nos poderes religiosos vigentes.

O uso de chicote só aparece em 1 dos 4 evangelhos (João). Uma atitude tão "disruptiva" de Jesus, depois do sermão do monte, seria no mínimo marcante para aparecer na maioria dos registros sinópticos. E esse trecho, segundo nota de rodapé da SBB (Sociedade Bíblica do Brasil) pode ser traduzida colocando como alvo do chicote as ovelhas e os bois. Isso faz bastante sentido, pois é comum vermos os peões usando de instrumentos como esse pra tocar o gado ou o rebanho, com o reio ou um galho grande. 


Precisamos atentar aqui que todo o processo se dá no contexto religioso, e não no secular. Jesus está atuando aqui como um profeta - que no sentido correto da palavra, é aquele que denuncia o erro dos reis (quando Israel era um reino), dos sacerdotes e dos irmãos da fé, e não um 'adivinho'. E esse papel de profeta vai ser reforçado ao vermos os trechos ao redor desse evento.

Jesus como profeta contra Jerusalém

Não é à toa que Jesus brada a expressão destacada em vermelho abaixo. E não é à toa que os líderes religiosos ficam bravos pois reconhecem a origem dela:

Mas vocês a transformaram em um esconderijo de ladrões.

Essa passagem ecoa muitos séculos antes na boca do profeta Jeremias (Jr 7:11).
Nessa época, o sistema religioso do templo estava passando por profunda corrupção e hipocrisia. Os ricos oprimiam os pobres (Jr 5:26-29) e também os pobres oprimiam seus semelhantes (Jr 6:13). Todos eram ocupados em enganar, adulterar e idolatrar entidades pagãs (Jr 9:1-9).

Os sacerdotes distorciam a Lei - resgatada no tempo do Rei Josias - e dentro do próprio templo adulteravam, roubavam, pregavam apenas boas notícias e faziam vista grossa ao pecado do povo. Perseguiam aqueles que Deus mandava denunciar a verdade. Alteravam e escreviam leis religiosas distorcidas (Jr 8:8) e usavam isso para dominar o povo, "e o povo gostava disso" (Jr 5:31)

Olha só que interessante uma das denúncias de Deus a Jeremias:
Vou castigar Jerusalém pois ela está cheia de violência. Como de um poço sai água, dessa cidade brota pecado. Só falam nas ruas da cidade, de violência e destruição. Só vejo doenças e ferimentos. (Jr 6:6-7)
A situação da época de Jeremias fica como:
  1. Deus estava furioso com a sujeira e impiedade no sacerdócio e do povo judeu
  2. Jeremias como profeta denuncia o pecado entranhado, a iniquidade dos religiosos, e clama que a casa de Deus virou covil de salteadores.
  3. Deus lamenta como queria reunir seu povo perto de si, mas seu povo é como figueiras sem figos, secas (Jr 8:13).
  4. Deus rejeita os sacrifícios feitos e os cultos prestados (Jr 11:15)
  5. A classe religiosa podre planeja violência contra Jeremias, como um cordeiro sendo levado ao matadouro (Jr 11:18,19)
  6. Deus levanta um reino poderoso estrangeiro (Jr 5:15-17), que domina e destrói o templo em Jerusalém, trazendo terror, valas coletivas queimando fora da cidade (onde se queimava lixo, em Hinom) e desolação (Jr 7:32-34).
Será que já não vimos isso no Novo Testamento? 
  1. A classe religiosa estava enfurecendo a Deus (Mt 23:13-36)
  2. Jesus denuncia os fariseus, sacerdotes e afins, e profere a mesma frase
  3. Jesus chora por Jerusalém (Mt 23:37-39) e também uma figueira seca (Mc 11:12-14,20) representa o futuro próximo de Jerusalém.
  4. Jesus toca os bois e ovelhas (normalmente caros e oferecidos pelos ricos) como as pombas (geralmente ofertados pelos mais pobres), mostrando a rejeição daquela hipocrisia legalista
  5.  A nata religiosa procura um jeito de matar Jesus (Mc 11:18)
  6. O império romano entre 66 e 70 dC destruirá o templo (Lc 21:1-24) e assolará Jerusalém (Lc 19:41-44). Os corpos de milhares foram empilhados no mesmo Vale de Hinom citado em Jeremias, que Jesus chama de Geena (inferno) no NT.
Assim, Jesus estava trazendo juízo para o templo e a classe religiosa, em ressonância com o que seu Pai fez com Jeremias. E em ambos os casos, culmina com a destruição do templo, sem sobrar "pedra sobre pedra".

interessante que além de apontar para a rejeição das ofertas, a expulsão dos animais do templo ecoa a desolação de Jeremias numa Jerusalém esvaziada (Jr 9:10) e a fúria de Deus pela perversão do povo atingindo "pessoas, animais e plantas" (Jr 7:20).

Portanto, essa atitude enérgica de Jesus está bem localizada e definida no contexto profético, aplicada somente ao ambiente religioso vigente, e denunciando toda uma estrutura eclesiástica apodrecida, muito além dos cambistas porém incluindo-os. Mais do que pombas, os sacerdotes estavam comprando vidas humanas (a vida de Jesus foi negociada com Judas por 30 moedas, o preço de um escravo).

Basta olhar para as atitudes das classes que habitavam o templo no NT: os sacerdotes, sumo sacerdotes frente a João Batista, Jesus e depois com os discípulos, Pedro e João, Paulo, Estêvão, Filipe. Perseguição e atitudes violentas, e associação com o poder político, com medo de desagradar Herodes, Pilatos, e jogando esses poderes políticos contra Jesus e seus discípulos, incitando a prisão, tortura, surras e morte. 
Cegueira espiritual, ao não conseguir enxergar o Reino chegando com João Batista e Jesus. Isso também acontece em Jr 5:21; 6:10.

Olhe para o final do Evangelho de Mateus, capítulo 28, onde os sacerdotes compram o silêncio dos soldados romanos que vigiavam o túmulo de Jesus e viram o anjo, e pagam para que eles mintam sobre o ocorrido. Ainda por cima, se comprometem a dar falso testemunho, contrariando seus próprios 10 mandamentos, a fim de manter seu poder político-religioso intacto. Isso é um sintoma bem grave da podridão religiosa ali.
Se olharmos a atitude de Jesus ao longo dos evangelhos, seus sermões, e compararmos com a atitude dos sacerdotes do Templo contra Estêvão, que taparam os ouvidos e gritavam (para não ouvi-lo proclamar Jesus), enquanto avançavam violentamente contra ele, quem está manisfestando o Reino?
E apenas um profeta, ao mesmo tempo Filho do dono da Casa de oração, Rei e sacerdote, Jesus, tem autoridade para trazer juízo e aplicar a sentença. Jesus não chancela nenhuma atitude de confronto profético agressivo. Vide as recomendações de Paulo sobre aconselhar irmãos que estão em pecado, "se velhos, como se fossem seus pais, se mais novos, como a um filho".

A condenação estava acontecendo na casa do Pai de Jesus, e o pulso firme estava sendo usado pelo Rei para com o seus supostos súditos. 

Partindo do absurdo

Vamos partir da hipótese de que Jesus foi fisicamente violento com o pessoal do pátio do templo. Todo o explanado acima desmente isso, mas vamos tomar como verdade para pensarmos.

Um profeta que diz para fazer A o tempo todo, mas em uma passagem faz o contrário de A.
Onde já vimos isso? 
Um exemplo é Oseias, que proclamava a fidelidade do povo à Deus e a obediência à Lei, mas por ordem de Deus casou-se com uma prostituta e ainda teve filhos com ela. Eram consideradas impuras. A lei proibia a prostituição. Porém em nome do cumprimento de um ato profético, para denunciar a ira de Deus para com Israel que o estava desobedecendo e traindo com outros deuses pagãos, ele teve um "Excludente de ilicitude profética", saindo da regra pregada, em nome da aplicação da profecia de maneira palpável.

Poderíamos dizer que essa violência apenas é aplicável em extremos em que somos ameaçados de morte, ou em contextos de embate religioso - porém mesmo no contexto religioso, Jesus foge do embate físico - veja como ele se escondeu na multidão e saiu do templo em Jo 8:59, quando os religiosos queriam apedrejá-lo. Mas não fez o mesmo quando era a sua hora no Getsêmani. Em nenhum dos dois eventos, Jesus aceitou revidar com violência, e sim com fuga ou mansidão.

Portanto até mesmo o Excludente de ilicitude profética tem limitação da violência.


Concluindo o episódio no Templo

Quando comparamos toda a trajetória, exemplos práticos e sermões de Jesus nos evangelhos, e o episódio no Templo, fica evidente que não se trata de uma conduta ensinada por Jesus, parte da cultura do Reino de Deus. A ausência do chicote nos demais sinópticos, as possíveis traduções do grego e a interrupção profética dos sacrifícios de gratidão, pecado e paz, são justificativas sólidas para não atribuir violência na atitude de Jesus.

Mas com ou sem chicote nas pessoas, esse evento é muito alienígena ao resto dos evangelhos, e exige uma explicação maior. Em favor disso pesa o trecho que diz "irai-vos mas não pequeis, para não dar lugar ao diabo", e o fato de Jesus nunca ter cometido pecado. Logo, ele não pode ter tido um simples acesso de raiva revoltado pela exploração comercial e corrupção sacerdotal. A estranheza de Jo 2 exige um plano maior.

O incrível alinhamento com a estrutura profética de Jeremias é uma explicação que harmoniza essa estranheza, pois não permite a extensão do ato enérgico de Jesus (como profeta, juiz e executor) para seus discípulos, enquanto traz a condenação de Deus para o seu templo novamente.

Jesus é o que eu precisar

Muitas vezes somos levados a trazer Jesus para as nossas preferências, tentando inconscientemente encaixa-lo nos modelos de mundo que nos agradam. Mas como já falamos no post sobre cidadania cristã, nosso crivo primeiro não está em modelos políticos ou econômicos humanos, e sim no Reino.

A passagem da mulher samaritana no poço de Sicar permitiria aos mal intencionados de realçar que a salvação vem dos judeus. Junte isso a passagem da mulher siro-fenícia onde Jesus se recusa num primeiro momento a abençoa-la e você tem uma receita para permitir ações xenófobas ou nacionalistas, como "veja como a Bíblia permite elitismo de raça ou etnia". Mas isso só funciona se isolamos o resto de Jesus (p.ex. a parábola do bom-samaritano). Um texto fora de contexto, sempre esconde um pretexto.

 Portanto trazer a "limpeza do Templo" como justificativa teológica de atitudes violentas, ou qualquer violência reativa ou 'preventiva' é no mínimo, apressada, e pode instigar os cristãos a terem um comportamento diferente de Jesus e não como cidadãos do Reino.

 Também vemos Mt 10:34 Jesus dizendo que veio trazer espada e não paz - não significa que podemos participar de atos violentos "em nome do Reino". 

Mas sim que por sermos primeiramente cidadãos do Reino, todo nosso tecido social é ou pode vir a ser rompido por nosso compromisso primeiro com esse reino. Nossas relações familiares podem ser abaladas.
Lembre-se que em muitas culturas - como a judaica e a romana - a religião era parte central de muitas atividades sociais e relacionamentos públicos. Assumir o Reino e o evangelho era rasgar a si mesmo do tecido social, das festas, eventos, e até mesmo excluir a si mesmo da família. Por isso mesmo Jesus diz que "quem perdeu pais, mães, família por causa do evangelho, ganhará ainda em vida tudo isso multiplicado por 10" através da Igreja.

 O caminho de Emaús é um bom exemplo de como as pessoas mesmo andando com Jesus ainda buscavam suas agendas políticas.

 Eles esperavam que Jesus fosse o libertador, o novo Davi poderoso que livraria Jerusalém dos romanos opressores e exploradores. Andavam tristes sem esperança. Enquanto seu foco, sua mente, estava na aplicação política de Jesus, eles não o reconheciam mesmo estando do lado deles.

 Jesus foi reconhecido quando Sua palavra foi compartilhada, quando ele partiu o pão pacificamente e deu graças. É esse o efeito do Cristo de verdade nos nossos corações, que o faz queimar não pelo ódio e revolta, mas pelo partilhar, pela comunhão e pela gratidão a Deus.

 Assim sendo, não é compatível com o evangelho nenhum argumento que encaixe "violência em nome do Reino de Deus".

 Vi há pouco em páginas públicas, gente "de Deus" defendendo leis e ações violentas, na forma de "todo castigo é pouco pra bandido", trazendo trechos do Velho Testamento como autorizações. Meus queridos, eu fui chamado para ser discípulo de Jesus, não de Josué, não de Moisés, nem de quaisquer outras sombras imperfeitas antes de Jesus. 

O meu Senhor, o que compra minha dívida e me torna seu escravo salvo da morte eterna é Jesus de Nazaré, e a Ele devo obediência e imitação E este como vimos acima, não dá margem para violência em seu Reino.

Claro que isso significa que a Igreja historicamente tomou certas bandeiras e partidos, entrou em certas bolas divididas que não deveria, e a consequência é o que vimos em tantas guerras, cruzadas e perseguições. Há terríveis erros da Igreja como instituição tanto antes como depois da Reforma Protestante. Calvino e Lutero também tiveram atitudes no mínimo indigestas em alguns casos.

E não é possível usar a desculpa do "espírito da época" ou Zeitgeist, dizer que eram homens do seu tempo e por isso limitados. O conjunto de textos citados lá no começo é o mesmo há pelo menos 1600 anos desde o códex mais antigo preservado. Esse conjunto de recomendações de Paulo, Pedro, Tiago, e ensinos de Jesus, faz parte das bíblias católicas e protestantes. Muitos camponeses e plebeus não sabiam ler, conheciam apenas o que ouviam nos sermões e missas. Mas não há desculpa por ignorância aos líderes que tinham acesso aos textos.

Esses erros graves do passado não nos isentam de hoje sentar, ler, refletir de qual Reino somos, e mudar de vida, revitalizar e pacificar a igreja como instituição e sua interface com o mundo.


Lembrando que o outro é alvo do evangelho

Não temos como cidadãos do Reino, motivo para aplaudir bandido morto, gente executada por qualquer lado do conflito urbano.

Não podemos ser indiferentes à policiais corruptos, ou desproporcionalmente agressivos, deliberadamente violentos e covardes, como semanalmente vem à tona nos noticiários. Gente que extorque, que atira pelas costas, gente que cria milícias e poderes paralelos. 

Sabemos que os policiais se arriscam por nós nas ruas, e a maioria competente e boa recebe a má fama dos poucos maus, que saem na TV. Devemos orar pela PM sempre, pois eles tem famílias que esperam todo dia ansiosas pelo seu retorno inteiros. Assim como nós, a maioria deles não quer ir todo dia pra guerra, e prefere não ter de atirar nunca. Essa rotina é psicologicamente pesada para qualquer um, sem mencionar a infraestrutura muitas vezes precária em vários quartéis e delegacias, e a desigualdade bélica (o bandido muitas vezes tem uma arma ilegal mais destrutiva que a PM e capaz de furar suas proteções).

Poucos dão cartaz à face solidária da PM, que além da segurança, muitas vezes faz serviços que não teria obrigação - até mesmo partos, comprar comida ou um botijão de gás, ou servir de terapeuta em discussão de marido e mulher de madrugada.

Eles também têm famílias que sofrem e amam

Ações solidárias nas comunidades

Há décadas as mulheres tem espaço na PM

Muitos esquecem (ou fingem não lembrar) de que a existência da polícia torna possível que nós não precisemos usar de força diariamente para proteger nossos direitos e propriedade.
Tem muita pessoa bem de vida, todo paz e amor, desconstruído, que esquece que só pode ser Zen porque o condomínio tem vigilância particular 24h e as ruas tem policiamento do Estado. De certa forma - por mais ineficiências e defeitos que possua - a existência da polícia e da Justiça evita em muitos casos que eu e você tenhamos que andar armados, prontos a defender nossa propriedade e nosso bem-estar, e tenhamos de usar violência.

E após digerir toda essas passagens bíblicas, me parece justo trazer para discussão pautas como a desmilitarização das polícias, adoção de armas não-letais e formas de contenção de violência que neutralizem a ameaça, incapacitem temporariamente o indivíduo e ao mesmo tempo protejam a vida dos inocentes ao redor.  Programas que ajudem a PM atuar na causa raiz dentro das comunidades e bairros, e não apenas na ponta, no sintoma. E uma punição rigorosa e midiática dos PMs ruins.

O Brasil é o país onde a PM mais mata, mas também onde ela mais morre. Ações que possam levar a reduzir esses dois números é condizente com o Reino. Considerar que esse embate polícia x bandido é o tratamento do efeito e não da causa, e de que quem quer que morra no conflito, é um potencial filho de Deus e alvo do seu amor. Diferente de "passar a mão na cabeça de bandido", o evangelho nos pede para deixar a reação violenta longe da tratativa, ao mesmo tempo que nos pede prudência. Nem justiçamento, nem facilitação. Pregamos contra o pecado local e o pecado instalado nas relações.

Conclusão

A violência não é uma ferramenta válida na mão do cristão. Não é um recurso do Reino de Deus. Nossa maneira de lutar é outra, nossas armas são espirituais. Xingamento, ódio mútuo, conspirações, guerrilhas ou milícias, nada disso é da nossa nova cidadania. Isso inclui a violência digital, que não é menos danosa por ser virtual.

Nosso rabi, nosso Senhor, não deu espaço para sermos outra coisa senão como ele: manso, aberto mesmo aos que queriam seu mal. Esperto mas não malicioso.

Bandido bom é bandido contido, e se possível, convertido ao evangelho.
A polícia deve ser vista como amiga da sociedade e com honra. E toda maçã podre deve ser punida na forma da lei.

Somos chamados como embaixadores do Reino de Deus, e se somos Seus filhos, então como diz o sermão do monte, devemos ser pacificadores.