Páginas

domingo, 12 de julho de 2020

O caderno da morte - As fake news e o cristão

O cristão, fake news e cancelamento

 

Estamos em tempos em que a narrativa é mais importante do que o fato. Trazer a interpretação deste para o lado ideológico que gostamos é o esforço mental do momento.
Podemos dizer até que, em muitas vezes, não está sendo sequer importante ganhar a disputa de narrativas, desde que o alvoroço criado seja suficiente para derrubar ou prejudicar o partido que eu não gosto, o político que eu desprezo. "Tanto faz se é verdade ou se está distorcido, desde que o(a) político(a) A seja prejudicada".



Junto a esse pacote está a cultura do cancelamento, a busca incessante de certos grupos ativistas - ou de pessoas simpatizantes - em esmiuçar a vida virtual (e às vezes, a real) dos desafetos político-ideológicos até que se ache algo com o qual possam criar muito barulho, tanto barulho que possam chamar a atenção do público, das marcas e patrocinadores a fim de romperem e isolarem socialmente a pessoa-alvo. Acabam por marginalizá-la.

Ironia completa é que muitos destes grupos são abertamente contra o preconceito, defendem os marginalizados da sociedade, e que vários deles não sobreviveriam ao mesmo tipo de escrutínio virtual. Aliás há muitas pessoas que começam a discordar desses movimentos, e acabam provando do próprio aparelho venenoso que ajudaram a montar.

Mas isso não é novo. Porém precisamos nos perguntar como essa cultura das "fake news", as notícias falsas/distorcidas se encaixa (ou não) com o Reino de Deus. Quem assume-se cristão pode participar deste tipo de atitude? essa pergunta é importante porque daqueles que não são "do Caminho", podemos apenas torcer pelo melhor, mas não esperar alguma busca por coisas do Reino.

Dando uma olhada no passado

A bíblia não previu os smartphones nem a internet (por onde essas fake news operam), mas ela fala desde sempre sobre a natureza humana, e o que as pessoas são capazes de fazer para defender seus interesses e ideologias.

No quesito do julgamento e condenação coletiva, a primeira ligação que fazemos é com a mulher adúltera que é trazida (Evangelho de João cap 8) até o meio do pátio do templo, onde várias pessoas ouviam os ensinamentos de Jesus desde o começo da manhã. Os fariseus e líderes judeus a obrigaram a ficar de pé no meio de todos, expondo ela à vergonha e a censura coletiva. Isso já nos diz muito.

A condenação da adúltera era um detalhe. Uma ferramenta. A exposição dela foi apenas para botar pressão popular em Jesus, criar uma platéia, por um holofote com microfone e dizer "e aí Jesus, cumpre a lei e mata, ou vai passar a mão e ser conivente com o pecado?".

Jesus deixou claro: se vocês acham que vão passar no crivo que vocês evocaram? vocês sobrevivem à lei de Moisés se forem colocados no lugar dela? Contra esses religiosos a crítica de Jesus era muito mais feroz: eles não eram apedrejados poque disfarçavam seus pecados e desejos impuros com um manto de religiosidade. Mas eram verdadeiros "sepulcros caiados, podres por dentro, com uma aura branca por fora". Eles não eram assassinos, mas odiavam. Não adulteravam como a mulher que arrastaram, mas devoravam as mulheres com os olhos. Nunca seriam pegos como ela foi, mas Jesus os pegou também em flagrante várias vezes olhando o coração.

Em momento algum ele "passa pano", faz "vista grossa" para o pecado dela. Ele mesmo a repreende depois: vá e não peques mais. Ele confirma que ela estava em pecado também.

Se você não passaria no mesmo escrutínio, na mesma "investigação", então não participe de uma.

A turma dos religiosos citados - e a turma do cancelamento de hoje - tem exacerbado aquela tentação humana de "ser a mão de Deus, punindo o mal em nome do bem maior". Mas o Bem Maior (Deus) não enxerga-os fora da categoria de maus. Pois todos pecaram, todos estão nus e sujos diante do Absoluto, do perfeito, e não há quem se salve. A diferença está não na qualidade mas na quantidade de pecados e consequencias.

Um dos exemplos mais emblemáticos de fake news e cultura do cancelamento está relacionado com a morte de Jesus, nas passagens do Novo Testamento que narram sua busca, prisão e execução. Quando lemos os 4 evangelhos, percebemos um retrato claro de que os líderes judeus, os sacerdotes e mestres da lei eram um grupo político-religioso poderoso e que mesmo se dizendo mediadores com Deus, se comportavam contrários ao Reino de Deus - pra isso sugiro que se você ainda não viu, dê uma olhada nos últimos posts sobre o cristão como cidadão e em especial, sobre como os verbos importam.

Ao longo dos evangelhos, vemos que essa classe político-religiosa citado era ativa em buscar algo com que incriminar ou desmerecer Jesus, com perguntas maliciosas, não raro em público, fazendo observação de cada movimento e atitude dele. Ao invés de buscarem sua própria santidade, buscavam algo de a ser distorcido em Jesus. Por isso essa atitude pró-ativa em caçar "pêlo em ovo" a fim de prejudicar alguém, não condiz com a mentalidade do Reino. Se é algo típico do grupo de líderes político-religiosos narrado, então eu como cristão devo evitar imitar e replicar. Afinal eles embora se digam religiosos, estão operando a favor dos poderes da escuridão (Lc 21:53).

Diga-se de passagem que quem fica ao redor esperando sorrateiro algum deslize ou falha para atacar é o diabo (1 Pe 5:8), enquanto que Jesus estava atento às necessidades dos outros, suas doenças e barreiras, para os curar, advertir, consolar.
Então começaram a vigiar Jesus. Pagaram alguns homens para fazerem perguntas à ele. Eles deviam fingir que eram sinceros e procurar alguma prova contra Jesus. Assim os mestres da Lei e sacerdotes teriam uma desculpa para o prender e o entregar às autoridades (Lc 20:20)
Se esse trecho acima não te faz lembrar algo dos dias de hoje, nada fará! Nos nossos dias há de todos os lados do espectro político e ideológico patrulhas fazendo exatamente o mesmo. Vigiando os outros. Financiando secretamente o compartilhamento de acusações em público. 

Perceba que essas pessoas, assim como o grupo religioso narrado, vigia os outros 24h mas não vigia a si mesmos. Escrutinam com pente fino o outro mas não os próprios pecados, defeitos e maldades (Mt 7:3-5).
Vigiam o outro não para o proteger ou para aconselhar, mas para prejudicá-lo, de preferência acabar com sua vida (Lc 22:2).
Financiam a difamação, o deboche público, mas não os necessitados.
Financiam até mesmo grupos armados, milícias ou vândalos para irem atrás coagir (Mc 14:43).

Depois de terem prendido Jesus, esse grupinho continuou seguindo o mesmo caminho, para ter certeza de que Jesus seria condenado e morto pelo Estado romano.



Frente a Pilatos, governador da Judéia, eles se prontificaram a ir acusá-lo falsamente (Lc 23:1-2, 5). Depois repetiram o mesmo com Herodes Antipas, governador da Galiléia, que estava na região nessa época (Lc 23:10). Dar falso testemunho e mentir são pecados contrários à Lei dada por Moisés. Mas na sua ânsia de "cancelar" Jesus, o grupo passou por cima da Lei que eles mesmos defendiam tão ferrenhamente. Esse tipo de gente persiste até os dias de hoje, passando por cima dos próprios valores se preciso for, para atingir seus desafetos, quem eles desejam destruir (Mt 26:59-60).
Muitas vezes essa sede de "queimar o filme" é tão grande que as estórias começam a divergir entre si, de tão fake (falso) que as news (notícias) são (Mc 14:56).



Vendo porém que as autoridades não decidiram a seu favor, e não conseguiriam "terceirizar o assassinato" nas mãos do Estado, o grupinho da escuridão muda de estratégia. Passa a inflamar a multidão (Mc 15:11, Mt 27:20), e estimular o poder popular a cometer a injustiça que eles não tinham coragem de terminar - embora tivessem planejado e financiado tudo. Hoje também temos aqueles que ficam nos bastidores estimulando a massa, o público, contra seus alvos político-ideológicos. Contratam bots (softwares), contas falsas, pagam influenciadores, criam campanhas virtuais e #hashtags. Criam marketing pessoal dizendo "se você é do bem, tem que aderir à nossa campanha".

E neste momento, tanto faz se o alvo é justo ou injusto, o importante é o barulho e não a razão. Pilatos e Herodes não acharam culpa em Jesus (Lc 23:13-15), mas graças à semente maligna plantada pelo grupo na multidão, o plano de morte foi concretizado.
Pilatos tentou argumentar, mas a multidão inflamada respondia cada argumento com mais alvoroço e gritos mais altos de "Crucifica!".

E no final quem é solto é Barrabás, preso entre outras coisas, por liderar revoltas na região (exatamente o que acusaram Jesus de ter feito).

Depois de plantado o "cancelamento em massa", a situação segue no piloto automático como uma avalanche. Não dá mais para voltar atrás. O povo quer ver o sangue. O povo quer a morte como espetáculo (Lc 23:48) - e como diz a Bíblia, "a gritaria deles venceu" (Lc 23:23).

Algo que é preocupante é justamente o barulho vencendo a razão. Hoje muitos grupos organizam-se para fazer o mesmo contra seus adversários políticos, ideológicos ou contra o que eles julgam ser errado ou injusto, pressionando empresas, patrocinadores, marcas, a seguirem sua agenda. Não porque elas entendam que a causa é justa, mas porque eles ficam com medo de perderem prestígio dos consumidores. Essa pressão popular joga com a pior parte do capitalismo: o dinheiro antes de tudo. Para não perder capital imaterial (a força da marca, a popularidade) e com isso, vendas de produto e perda do valor das ações na Bolsa, essas marcas cedem e queimam, marginalizam e isolam seus financiados e patrocinados. A gritaria venceu.

Nem depois de morto deixaremos ele viver

Mesmo depois da morte na cruz, o grupinho seguiu seu assassinato de reputações. Foram de novo até Pilatos no dia seguinte, pedindo para haver uma vigia do Estado sobre o corpo de Jesus, "para que as mentiras dele não sejam reforçadas a seu favor". Isso tem muito eco nos dias de hoje, em que várias patrulhas de lados distintos buscam formas de silenciar seus opositores, se possível com ajuda do Estado, em prol de "preservar a verdade e proteger a sociedade". A censura velada ou aberta é sempre perigoso. Jesus não censurou nenhuma das perguntas maldosas e das armadilhas verbais dos fariseus, dos saduceus e outros que se aproximavam. Ele tampouco combateu os boatos a seu respeito - uns diziam que ele era Elias, outro Jeremias, mas apenas alguns sabiam que era Filho de Deus. Ele também não rebateu as acusações falsas dos religiosos frente a Pilatos.

Mesmo tendo dado Jesus como morto, o grupinho seguiu assassinando a reputação de Jesus. Agora, subornando os soldados que viram os fatos sobrenaturais no túmulo (Mt 28:4), para darem falso testemunho dizendo que o corpo de Jesus tinha sido roubado pelos discípulos (Mt 28:11-13) e se dispondo a darem eles mesmos, os mestres da lei e sacerdotes, falso testemunho perante as autoridades (verso 14 e 15).


No mundo dos mangás e animes, existe uma série chamada Death Note (o caderno da morte), em que o protagonista encontra um caderno sobrenatural, em que todo nome que fosse escrito ali seria assassinado. Esse caderno pertencia ao demônio Ryuk, uma espécie de espírito da morte e do suicídio. Temos que ter cuidado para que, com as nossas atitudes, não estejamos assassinando pessoas indiretamente, aparentemente "sem sujar as mãos". Que não estejamos escrevendo o nome delas no "caderno da morte" de maneira inconsciente, e muito menos de maneira voluntária!

Conclusão

Por isso essa cultura do cancelamento e as forças-tarefa de boataria e difamação não tem nada a ver com o Reino de Deus e com a postura de Jesus. Pessoas são prejudicadas por atitudes muitas vezes legais (pela Constituição), seja em vida (arruinando-a) ou em morte (manchando sua reputação, derrubando estátuas e corrompendo biografias).



Você como cristão, não repasse, não participe e não reforce os movimentos de "cancelamento" ou de "queimação de filme". Não levante #hashtags e nem envie por whatsapp as "notícias que estão sendo escondidas". Esqueça mensagens que começam como "agora o povo acordou!",  "agora a cobra vai fumar", e afins.

Veja Jesus em João cap 8, no episódio da mulher adúltera: o grupinho traz e arma um espetáculo para ele condenar, chancelar o veredito e até mesmo pegar uma pedra também. E Jesus continua calado, ignorando a turma do linchamento, ficou escrevendo no chão. Eles ficaram insistindo muitas vezes. Ele deixou claro: se vocês acham que passam no mesmo crivo que pregam, se são perfeitos, vão e façam. E voltou a escrever no chão. Jesus não 'bateu tambor pra maluco dançar". Não deu Ibope para o justiçamento coletivo.

Não se deixou animar em ser "a mão de Deus" fazendo justiçamento, condenação.

Se dizemos (com razão) que cristão não pode apoiar tortura, já que Jesus sofreu com isso em sua morte, também não podemos apoiar qualquer movimento de inflamação popular, boatos, fake news e cancelamento de pessoas, pois foi esse o instrumento de sua condenação, mais do que a tortura!

Não gaste o seu tempo buscando trincas na santidade alheia, pois elas existirão sempre no outro - e imagine só, em você! todos pecamos e carecemos juntos da misericórdia de Deus. Se buscarmos nos seus históricos de internet, nas conversas de celular ou nas coisas que você pratica, será que você passa no mesmo crivo que usa com os demais? Lembre-se que diante de Deus, você só dará conta das suas trincas e falhas, então porque não cuidar só delas? 

Não gaste tempo e dinheiro financiando fake news, torcendo pela exposição do outro, mesmo que ele pense diferente de você. Foque na sua santidade e no bem do próximo. Ore pelos seus inimigos, pelos políticos e pela nação, como já comentamos no Cristão como Cidadão.

Gaste tempo com o bem, pois o mal com o tempo cancela a si mesmo.