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sábado, 2 de janeiro de 2021

Cego, surdos e sentados



Um conjunto de engrenagens, numa máquina, precisa estar bem ajustado, com os dentes bem feitos, lubrificados, do contrário aparecem folgas em alguns pontos, e excesso de pressão em outros. Isso faz com que a máquina comece a ter vibrações, ruídos e todo o conjunto tenha a vida útil reduzida. Todas as engrenagens se estragam mais rápido. E tudo isso por causa de um dente de uma engrenagem que precisava de restauração.

Os dias passam e nós interagimos uns com os outros, como dentes das engrenagens da família, do trabalho, da igreja. Mas prestamos atenção ao que precisa de reparo? Toda grande falha nos metais começa com microtrincas minúsculas, que se acumulam e espalham.

Microtrinca em uma peça de metal que rachou

Mas prestamos atenção a elas? ou esperamos até que estejamos rodeados de ruído, sobrecargas e injustiças?

Nós como seres humanos, falhos e tendenciosos, temos o costume de ignorar os problemas, ameaças e necessidades ao nosso redor, mesmo que sejam urgências da nossa própria vida. Isso tem piorado ao longo das épocas, hoje em dia com mais distrações, mais foco no meu EU e na minha felicidade, do que nunca.

Somos rápidos em identificar os problemas e soluções para a vida dos outros, mas quando nos falam de nossas próprias rachaduras, dizemos que "no meu caso é diferente", isso quando não rebatemos com "você fala isso porque está com inveja/ciúme/raiva". 

Nós demoramos pra agir, preferimos não agir, pois isso significaria ter que mudar, ter que se indispor, interromper algo que está em curso. E muitas vezes, isso significa assumir que estávamos errados - seja por agir, seja por ter deixado de agir. Aquele que sabe fazer o bem mas não age, comete pecado (Tg 4:17).

Procrastinar o que precisa ser feito, especialmente sobre relacionamentos pessoais, é como montar uma bomba-relógio sob nossa própria cama, fazer uma armadilha para si mesmo. É seguir o profeta Zeca Pagodinho, que "deixa a vida te levar", ou que acredita que "o tempo cura tudo".


Quatro ajudantes de Zeca

Vamos dar uma olhada em 4 homens que estavam absolutamente alienados do que se passava em suas próprias casas. Deixaram as "coisas se acertarem por si mesmas".

Em 1 Samuel, nos capítulos de 1 a 4, conhecemos Elcana e Eli. 

Elcana era marido de 2 mulheres, Ana e Penina, sendo que Ana era estéril. Ana sofria por anos nas mãos de Penina, que a humilhava, provocava e oprimia diariamente, a ponto de ela entrar em depressão (1:6,7), sem comer, apenas chorando profundamente. Elcana estava absolutamente alheio a isso, a ponto de querer animá-la com fatura (1:5), e ainda reclamar com Ana: "como voce pode estar tao triste e chorona, eu não sou suficiente pra você?" - provavelmente devolvendo a culpa para Ana, como se ela o ofendesse com "tamanha ingratidão".

Depois vemos Eli, que estava como sacerdote em Siló, e que não conseguia perceber o sofrimento profundo de Ana, quando ela foi com a alma amargurada e aflita orar ao Senhor (1: v.10). Ela nem força tinha para falar, apenas mexia os lábios. E Eli lhe deu uma repreensão dizendo que "ela devia largar essa vida de bebedeira". Confundiu desespero com embriaguez. 

Eli também não conseguia ver que seus filhos Hofni e Finéias, também sacerdotes, estavam abusando do povo através do seu status, a ponto de tomar à força parte das ofertas que traziam, e ter relações sexuais com as mulheres que trabalhavam na Tenda Sagrada.

Eli precisou ser alertado por terceiros (moradores, profetas, etc) para saber dessa baixaria toda, e quando soube, se limitou a dar uma bronca. Deus condenou a passividade alienada de Eli (1Sm 2:29 e 3:13). Eli continuava apenas SENTADO na sua cadeira em frente à Tenda Sagrada (onde ficava a Arca da Alianca). Do capítulo 1 ao 4, Eli aparece sempre SENTADO no problema, alheio ao que acontece, e insensível ao próximo. Sua cegueira não era apenas física, mas de espírito. Tanto é, que as visões e mensagens do Senhor eram muito raras (3:1). O povo e o próprio Eli estavam SURDOS. Eli sequer ouviu a voz do Senhor quando Ele chamou por Samuel à noite (1Sm 3:3-8).

Eli bravo achando que Ana estava bêbada


Precisou Deus levantar um novo profeta e sacerdote - o aguardado filho de Ana, Samuel - para voltar a falar com o povo (1Sm 3:19-21).

E então Eli morreu da maneira que viveu - SENTADO (1Sm 4:12-18), trazendo condenação do Senhor para si, para seus filhos (que morreram) e para seus descendentes (1Sm 2:31-36).

O rei Davi também passou pela mesma alienação passiva (2Sm 13), tendo ignorado suas relações familiares, a ponto de sob seu nariz, na família real, ter havido estupro, vingança, assassinato, conspiração, tudo isso entre seus próprios filhos. Absalão, Tamar, Amnon, todos sofreram anos com a indiferença alienada de Davi, o que culminou na guerra civil entre seus filhos, dividindo o reino em 2: Judá e Israel. Foi o princípio do fim.

Abraão não interveio e deixou o conflito entre Sara e Agar ser resolvido "entre elas", deixando com isso que Agar fosse enxotada grávida para o deserto, e numa vez seguinte, que fosse enviada com Ismael ainda menino para morrer no deserto (Gn 16 e Gn 21). Nas duas vezes, Deus cuidou e trouxe Agar e Ismael de volta.

O primeiro erro destes homens não foi apenas "não saber", mas sim "não buscar saber", não se interessar, apesar de verem sinais, indícios de que algo não ia bem. A ignorância só se torna um pecado quando é voluntária. Todos viviam alienados, incapazes de perceber no outro a aflição, o conflito, o problema. O erro aqui foi o desinteresse, a insensibilidade.

O segundo erro foi de permanecerem alienados. Uma vez que sabiam, tentaram deixar "as coisas se resolverem", e não se envolveram. Em todos os 4 casos acima, o problema continuou acontecendo mesmo depois de os sinais e indícios virem à tona. Procrastinaram o seu envolvimento, ou delegaram a outros que tomassem uma decisão por eles (como Abraão, em Gn 16 e Gn 21).

Eles não sabiam, não buscavam saber e por último - quando não tinha mais como permanecer alienado -  seu terceiro erro foi simplesmente tratar dos efeitos e não da causa-raiz. É como enxugar gelo. Sem tratar a ferida, não adianta por curativo.

Elcana quis sanar a depressão de Ana com mimos. Eli deu uma bronca, e largou a causa. Abraão terceirizou, e "se livrou" do problema do pior jeito. Davi apenas pediu aos seus guardas que não matassem seu filho Absalão na guerra civil.

Não querer saber, procrastinar seu envolvimento e não tratar a causa. Isso tudo forma uma receita para o desastre, para que o pecado "dê crias" e invada como um câncer a vida de todos que nos rodeiam, trazendo o que o pecado faz melhor: roubar, matar e destruir.

Aprendendo com Jesus

Jesus por outro lado, estava atento ao seu redor. Ele percebia que seus discípulos, enquanto andavam na estrada, estavam discutindo entre si, sobre quem era o mais importante entre eles (Mc 9:33). Em Cafarnaum, em casa, Jesus sentou e colocou o assunto a limpo.

Jesus percebeu a mulher com hemorragia, que o tocou no meio da multidão. Pediu para ficarmos atentos aos sinais dos tempos, mas também aos que sofrem (Mt 25). Olhando as multidões, Jesus se compadecia delas. Observando os seguidores que iam pela estrada de Emaús, percebeu neles a tristeza e frustração, e claro, atuou imediatamente.


Nós somos convocados ao longo de toda a Bíblia a termos um papel ativo. Nós somos embaixadores do Reino de Deus, na promoção dos seus valores, e na mordomia (um cuidado ativo, como mordomos, administradores) de tudo que temos em nossas mãos - recursos, influência, tempo, vigor. Especialmente os nossos relacionamentos. Eles podem ser usados para atrair ou para afastar, para dar testemunho ou para entristecer, ofender.

Isso é tão importante que em Mateus 5:20-26, o próprio Jesus recomenda que antes de cumprir as suas rotinas religiosas, é preciso estar reconciliado, em paz, com o próximo. Isso reflete também o que vemos no Antigo Testamento, quando diversas vezes Deus diz "misericórdia quero, e não sacrifícios. Rios de justiça e não mais cantorias em cultos".

Para pensar

Precisamos prestar atenção, se estamos sendo atentos, se estamos fazendo uma boa mordomia dos nossos relacionamentos. 

Quantos "Hofnis e Finéias" têm tocado o terror dentro das igrejas, ferido membros emocionalmente e os afastado espiritualmente pelo mau testemunho, enquanto muitos pastores tem se comportado como Eli, ignorando os sinais ou apenas dando uma chamada de atenção? quantos tem evitado o conflito em prol dos "bons números alcançados" ou pela falta de substitutos? 

Ou quantos de nós não fomos ou ainda somos os Hofnis e Finéias sem perceber?

Quantos líderes de ministério existem sem saber o que acontece dentro dos seus ministérios, com seus membros, ou ignorando os sinais em prol da "paz" e da "boa convivência"? Como o Senhor já mostrou com os profetas Jeremias e Ezequiel, não existe PAZ sem correção de vida, não existe OFERTA válida sem comunhão

Quantos de nós, membros de uma comunidade, "fazemos a egípcia", evitamos quase propositalmente ter intimidade com os irmãos e irmãs da igreja, sem tomar conhecimento dos seus problemas, suas necessidades, sem saber, sem querer saber, sem se interessar, e depois os despedimos mecanicamente após o culto? Veja que nada adianta fazer esse culto (Tg 2:15-17), pois é baseado numa fé morta, desligada da horizontal.

Quantos Elcanas existem em seus lares, tentando abafar os desajustes familiares com bens, abundância, e ainda viram o jogo devolvendo com mais culpa, reclamando que "fazem de tudo, dão de tudo"?

Que eu e você possamos aprender a ser mais como Jesus, e menos como os 4 alienados e desinteressados acima.