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quinta-feira, 11 de junho de 2020

Dois passaportes, um visto



O cristão como cidadão




A cidadania de uma pessoa quanto a um país, envolve os deveres e direitos que ela tem dentro da constituição desse país. O que os governantes podem esperar e o que devem oferecer a essa pessoa.
É possível devido a questões genealógicas, ou profissionais, que a pessoa possa requerer a cidadania de um país. Neste caso, ela passa também a ter um passaporte do país que abraçou. Em alguns casos, ela pode perder ou ter de abrir mão da cidadania antiga.

Aqueles que seguem a Cristo possuem uma cidadania própria e primeira - somos cidadãos de um Reino onde a lei de Deus é nossa constituição, nosso governante é o Senhor e ao sermos chamados por Jesus a uma nova vida, ganhamos nosso passaporte. A cada dia que passa, estamos mais próximos de passar pela imigração e ficar de vez nesse reino.
Um reino de paz, justiça e alegria no Espírito Santo, sem corrupção e sem carências. Só o tema 'Reino de Deus' já rende um outro post gigante pois é profundo e abrangente.

O conjunto daqueles chamados por Cristo para essa imigração definitiva, formam a igreja, sendo que sua face visível deva ser como Embaixadas desse Reino (igrejas visíveis). E nós, como diz Paulo, somos embaixadores de Cristo (2 Co 5:20), enviados pelo próprio Jesus (Jo 20:21) e tirados do reino das trevas para o seu (Col 1:13). Somos chamados a buscar e anunciar a vontade do nosso rei (Jo 5:30). Somos como forasteiros nessa existência (1 Pe 2:11), pois nosso reino não ligado a esse mundo, nossa pátria está nos Céus (Fp 3:20). Nossa esperança não está apenas no que vemos aqui nesta existência, senão seríamos muito infelizes (1 Co 15:19).


Uma prévia saborosa



Isso significa que devemos viver alienados, sem tocar ou interagir com nada? se possível em cavernas como eremitas? claro que não. A igreja não foi pensada para ficar escondida, mas para ser como uma cidade iluminada no meio de um deserto escuro. Ela foi pensada para ser um farol desse reino a que pertence, e para trazer ao mundo um gostinho de como é esse reino. A igreja não é o reino em si, mas permite que as pessoas provem uma versão "demonstração", uma versão antecipada, uma amostra dentro das limitações desta vida. Como uma "degustação", quando o atendente da sorveteria nos oferece uma pazinha com um pouco do sorvete maior para provarmos. Assim como visitar a casa de alguém que imigrou de seu país de origem significa experimentar um pedacinho dos costumes desse país.

Nós cristãos cremos que a realização plena do nosso Reino não acontecerá até a volta de Jesus. Até lá, a tendência natural do mundo é maldade e violência. O que podemos prover são alguns oásis temporários na existência sofrida do mundo, a fim de não apenas fazer o bem mas atrair para nosso Reino aqueles que estão cansados e perdidos.

Esses cristãos, cidadãos do reino de Deus, não vivem nas nuvens, eles vivem em sociedade junto de outras pessoas de outras cidadanias. Convivem com diferentes autoridades seculares, legislações e afins. Afinal, os cristãos também são cidadãos nascidos em alguma pátria secular. Temos dupla cidadania - uma do reino de Deus e uma secular, ou melhor, uma devido a onde nascemos, e outra devido a nascermos de novo.


O cidadão cristão num mundo diverso


Como é o cidadão cristão na interface, na interação com o governo local e cidadãos deste governo secular?

Eis um condensado dos trechos abaixo, agrupando orientações em comum deles:

1 Pe 2:11-17 e 1Pe 3:13-17. 1 Tm 2:1-3; Rm 13:1-14; 1 Co 11:32-33; Cl 4:5; Tt 3:1-15; Rm 12; 1 Ts 5:4-10; Gl 3:26-28 ; Tg 2:1-10; Fp 2:3-4

A conduta entre os outros deve ser boa, fazendo o bem, sem terem no que nos difamar, eles terão de reconhecer nossas boas ações e assim louvar a Deus.

Obedientes às autoridades humanas e ao chefe de Estado (na época o Imperador) e os governadores e ministros indicados por ele, e obedientes às leis do Estado, a fim de não serem castigados. E olhe que aqui o autor está vivendo sob o jugo do império romano, que com certeza não era amoroso.

aquele que tiver autoridade (e for cristão) que a use com zelo, com cuidado ao próximo.

Respeitando os chefes dos Poderes Políticos vigentes, reconhecendo que toda autoridade do país ocupa seu posto porque Deus o pôs lá, seja Nero ou Abraham Lincoln.

Não revoltando-se contra as autoridades. Elas estão lá cumprindo um propósito de Deus, um plano Dele, por mais absurdo que isso pareça às vezes.

Pagar corretamente os seus impostos exigidos pelo EstadoNão há uma ressalva bíblica se o governo for corrupto ou se a carga tributária for alta no país

Orando pelas autoridades do país, governantes e reis, pedindo que Deus as abençoe e ilumine, de forma a termos dias de paz e possamos nos dedicar a fé.

Esperando que estes ministros castiguem o que pratica o mal e elogiem o que faz o bem. Mas se assim não for, respeite mesmo assim e sofra por fazer o certo. Se tiver que sofrer, que seja por fazer o bem e recusar fazer o mal, e por nos mantermos fiéis como cristãos.  Orando por aqueles que nos perseguem, pedindo que Deus os abençoe e sem nos vingar nunca pois isso é direito exclusivo do Senhor Deus.

Que não sejamos castigados por sermos assassinos, ladrões, criminosos ou nos metermos na vida dos outros.

Vivendo como pessoas livres, sem usar essa liberdade para encobrir o mal, lembrando que somos escravos de Deus. Usando o tempo fazendo o bem e ajudando os outros.

Respeitando todas as pessoas, e buscando ser agradável com todos, sem prejudica-los. Sendo sábios com os que não creem, aproveitando bem o tempo com elas, com conversas agradáveis e de bom gosto. No que depender de nós, procurar viver em paz com todos.

Estando prontos para explicar nossa fé e nossas razões nela, sempre com educação e respeito, sendo pacíficos e calmos.

Prontos e pró-ativos no defender os oprimidos: o direito da viúva, do pobre, do coxo (inválido), do órfão e do estrangeiro. Antes de qualquer sindicato existir, antes de haver bastilhas a serem derrubadas ou Marx, Hegel, Engels ou Feuerbach viessem a existir, essa missão já era cláusula pétrea na Constituição do Reino de Deus. Não é uma invenção de nenhum espectro político.

Advoga também em favor do meio ambiente, uma responsabilidade desde Gênesis. Cuida dos animais (sem crueldade) cf Pv 12:10, mas vamos ver isso num outro post.

Vivem na luz, e não nas sombras, do dia e não da noite, longe de excessos, indecência ou brigas, pois as ações do cristão são lícitas, benéficas, e devem testemunhar sua fé.

Contrários a todo preconceito de raça, etnia, sexo, ou classe social, considerando sempre o outro não apenas como um igual, mas como superior a si mesmo.



A estranheza

Com um comportamento diferenciado é claro, gera-se uma estranheza. Uma vez que os cristãos valorizam coisas da maneira diferente, e evitam outras, é esperado que nem tudo que a maioria faz ou busque seja assim também pelo cristão. Ou que coisas aceitas pelo restante sejam denunciadas como negativas por eles. Ou coisas que os cristãos acham positivo, serem motivo de chacota, de perseguição.

Nesse ponto, a própria existência do cristão com seu comportamento 'diferente' já é um escândalo, uma denúncia constante de que há algo errado no mundo, que há alguém superior cobrando uma mudança de vida, e de que há uma outra realidade além daquela que se vê diariamente pela janela. Mesmo que ele seja mudo (ou calado). O cristão no meio do mundo caído é como o Espírito Santo habitando dentro de nosso corpo humano pecaminoso e violento: serve para aconselhar, consolar, alegrar, interceder, e escancarar o pecado, a justiça e o juízo vindouro.

Isso pode até mesmo gerar hostilidades, o que foi muito comum já nos primeiros anos da igreja primitiva, quando o cristianismo era uma novidade exótica. A igreja não persegue, ela é perseguida. Ela não hostiliza ou oprime, ela é alvo de opressão (1Ts 2:14)

Parece bem evidente que se a igreja não estiver incomodando e sendo perseguida, é porque não está incomodando e sendo relevante o suficiente.


A denúncia do errado e a recusa do pecado

O cidadão cristão não é alheio ao fato de que existem agentes públicos - sejam políticos ou não - que fazem o errado perante a lei (crimes) ou que ferem a nossa lei do Reino.

Neste caso, o que fazer?

Paulo passou por essas injustiças públicas por parte do governo romano pelo menos duas vezes narradas em Atos, sendo uma em Filipos e outra em Jerusalém. Nas duas vezes, Paulo usou aquilo que lhe era permitido: exigiu o cumprimento da lei romana, que impedia a aplicação de qualquer pena sem um julgamento completo (At 16:35-40, At 22:25-29).
Paulo defendeu sua causa perante os juízes em várias instâncias, sempre com respeito às autoridades presentes.

Mesmo durante as transferências de Paulo, sendo levado em viagem de uma instância a outra, ele jamais aproveitou das paradas do comboio para fugir dessa prisão temporária injusta. Podemos ver isso em Atos 28, na cidade de Malta (3 meses), depois em Roma por 2 anos (prisão domiciliar, esperando a audiência com o imperador). Para Paulo, não trazer mancha à imagem do evangelho e fazer a justiça ser anunciada até o fim era mais importante, pois comunicaria muito do caráter do Reino de Deus.

Paulo não buscou uma forma de retaliar os que o agrediram, acusaram injustamente e chegaram a deixá-lo desacordado de tanto apanhar. Ele foi atrás da lei vigente. 

E o império romano não era um exemplo de justiça e bondade. Havia abusos constantes de autoridade, decisões abusivas contra não-cidadãos e escravos, etc. Veja por exemplo a ordem de Herodes de matar todas as crianças de até 2 anos na região de Belém, quando Jesus nasceu. A ordem de Pilatos de matar vários galileus quando ofereciam sacrifícios a Deus (Lc 13.1).

Jesus também não deixou de denunciar e criticar o mau comportamento das autoridades. Vemos ele referir-se a Herodes como "aquela raposa" (Lc 13.23). Todavia, vemos Jesus também reconhecendo a autoridade de Pilatos, uma vez que toda autoridade é permitida por Deus (Jo 19:9-12).

Como cidadãos do Reino, nossa única ressalva para não obedecer às autoridades e a lei secular é essa: caso essa ordem do governo ou lei seja contrária à Lei do Reino, ou seja, se ela exige que façamos coisas que não estejam em consonância com o que a Bíblia nos ensina.
Um exemplo disso é a clássica desobediência de Daniel e seus amigos hebreus, quando na Babilônia foram ordenados a adorar o rei como a um deus. Ou quando Pedro e os demais apóstolos se recusaram mais de uma vez a obedecer a ordem do Sumo Sacerdote de não pregarem mais o Evangelho (At 4:18-20 e At 5:26-30).

Portanto, vamos a alguns aplicativos dessa conversa:


Pequenas corrupções, grandes crimes



Sendo assim, o cidadão cristão não pode ser conivente com várias atitudes ilegais ou antiéticas do dia a dia, que ferem o direito do próximo e dessoam do que a Bíblia diz acima. Tenho minhas dúvidas se o famoso "cidadão de bem, pró-família e cristão" as cumpre:

  • Parar em vaga de idoso ou deficiente sem o precisar, ou em fila dupla
  • Ir para fila de idosos, gestantes ou outra preferencial, sem o ser, pois "tem pressa"
  • Estacionar do jeito que preferir, sem verificar se atrapalha os demais
  • Bater de leve o carro (famosa 'encostadinha') e sair sem se identificar e assumir
  • Apoiar a pirataria ou acesso ilegal de produtos - a lei secular não permite, e a lei de Deus não tem exceção tipo "obedeça exceto se for pobre"
  • Comprar decoder "cabrito" ou "gatonet" que pega 1500 canais indevidamente
  • saquear caminhões que tombam com produtos na estrada "porque tem seguro"
  • aceitar cargos e facilitações "questionáveis", troca de favores, propina, suborno ou esquemas de "rachadinha", caixa dois, aceitar remuneração "por fora" sem declarar
  • proteger ou fazer vista grossa a crimes e criminosos (corrupção passiva/ativa)
  • receber auxílios, doações ou estar inscrito em programas de ajuda do governo sem precisar ou porque "todo mundo está pegando"
  • sonegar impostos, colocar dependentes a mais na declaração, aceitar notas fiscais forjadas ou frias, pedir reembolso a mais nas despesas da empresa.
  • Ser conivente com ações que estejam humilhando pessoas, como atitudes racistas, bullying e discriminatórias, mesmo que seja com pessoas que praticam o mal, ou não estão alinhadas com os valores do Reino. Não tem cláusula de "exceto se forem gays, ou negros, ou imigrantes refugiados".
É claro que essa é uma lista de exemplos, não uma definitiva. Mas já dá pra ter uma ideia.

Alguém pode tentar justificar com "mas muitos só vão ter acesso a energia elétrica se fizerem 'gato', ou acesso a alimentos ou a internet se furtarem. O povo tem fome, há injustiça". Isso continua errado, pois é tanto um pecado do que pratica, quanto da igreja que tendo obrigação - antes do governo - de ajudar nessa tarefa, está sendo omissa!

Aliás a escravidão de negros traficados da África é um excelente exemplo de coisas que antes eram lícitas pela lei humana, mas condenadas pela lei do Reino. E hoje é condenado pelas duas leis. Mas e os sulistas americanos donos de escravos, que eram cristãos? ou os senhores de engenho brasileiros que eram piedosos católicos? eram maus cristãos, e isso pesa sobre suas cabeças. Esse é também um bom exemplo do porque o Reino de Deus não vai ser completado neste mundo. A igreja é cheia de gente falha como todos, mas não pode ser um lugar onde o erro permanece, e sim que é combatido para sermos cada vez mais parecidos com Cristo e alinhados com o Reino. Ainda assim, houve exceções de donos de escravos que os tratavam bem, ensinavam, educavam, e como homens livres antes mesmo da abolição da escravatura. Triste dizer que foi uma exceção.

Não se pode ter um cidadão cristão numa passeata da KKK falando de supremacia branca, nem em uma rodinha de bullying com nerds e gordinhos, ou agitando quaisquer bandeiras que tenham em seu "código de conduta" atitudes que contrariem essa nossa cidadania primeira que é do Reino de Deus. O Senhor é a nossa bandeira (Ex 17:15).

Veja depois o nosso artigo sobre "O cristão e as bandeiras alheias"

De semelhante modo, não podemos como cidadãos do Reino, apoiar medidas do governo ou políticos que não transmitam os valores do Reino. Temos de nos manifestar contrariamente, enviar mensagens que cheguem até esses governantes (p.ex. o email do político, ou na rede social dele), denunciando seus valores errados. Antes do apoio a um partido ou pessoa política, temos compromisso com o nosso próprio Rei.

E como cristãos, devemos apoiar aquelas medidas, leis e iniciativas públicas que tenham ressonância com os valores do Reino. Não importa qual o partido, se a medida ajuda a promover os valores do Reino, devemos dar suporte - claro, não de maneira irrestrita e cega, sempre capazes de analisar criticamente. Medidas que reduzam a pobreza, facilitem a punição de agentes públicos desonestos, tudo isso vem antes de preferências políticas ou ideológicas.

Assim como Paulo apelou a sua cidadania romana para valer a lei, devemos também nos esforçar ativamente para que outras pessoas tenham sua cidadania (garantida no Brasil pela constituição) garantida, afirmada, e se possível, que tenham nossa dupla cidadania, sendo cidadãos do reino também!

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