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quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Betesda - Tanque de Graça e desgraça



Deus nunca deixou de visitar seu povo, nem os que a sociedade costuma esquecer - propositadamente ou não. E o ser humano há muitas gerações continua o mesmo em sua natureza complicada.

Uma de minhas passagens preferidas na qual tudo isso é mostrado, está nos relatos do apóstolo João, na nossa bíblia atual, no capítulo 5 (na Antiguidade os textos bíblicos não era dividido em capítulos, veja as curiosidades no fim do texto).

Em Jerusalém há um conjunto de tanques e piscinas, construídos sobre fontes de água e nascentes, chamado Betsaida - em algumas traduções, Betesda. O tanque de Betsaida tem perto de 13m de profundidade, e é bem extenso, para servir à população e ao templo, e fica ao sul do templo, próximo a porta de entrada das ovelhas.

Ali acontecia de vez em quando um evento sobrenatural. Um anjo tocava as águas da piscina e as agitava, e o primeiro que ali entrasse seria curado de qualquer enfermidade. 

Ali ao redor dela havia uma população excluída, marginal, de gente paralítica, cega, leprosa, manca, buscando essa fonte de cura. E um homem estava ali tentando há 38 anos sem nem conseguir por si mesmo, nem obter ajuda para isso.

Até que Jesus chega e vai até ele, e o cura com uma ordem expressa.





Esse foi um resumo. Leia completo em João Cap 5: Clique aqui para ler Jo 5 online

Algumas coisas que gostaria de meditar a respeito desse episódio no tanque de Betesda:

1) A Graça de Deus - seu agir pró-ativo em favor dos homens pecadores - se fez e se faz presente também do lado de fora do ambiente religioso. Deus continua sendo Deus e decidindo onde e como vai atuar, e não se deixa prender/depender de rituais religiosos ou locais específicos. Onde quer que Deus deseje derramar da sua Graça, Ele não pede carteirinha nem placa religiosa. Ele faz, ele provê, e não se deixa encaixotar nem domesticar. Ele continua sendo a figura simbólica do Leão da tribo de Judá, que ruge, anda, move, e devora quem tenta mantê-Lo em cativeiros psicológicos e ritualísticos vazios. Os fariseus e sacerdotes (ainda em João 5) se enfurecem e invejosos tramam matar Jesus por ter manifestado cura fora do templo e ainda mais no sábado, que era dia sagrado!

  • O Deus Pai cria fontes sobrenaturais do lado de fora de Jerusalém, encontra Jacó no meio das estradas do deserto. 
  • Jesus trafega de um cemitérios (lugar impuro para judeus) para sinagogas, de praias para templos, sem se lavar nem apresentar passaporte religioso. O mundo é plano pra ele.
  • O Espírito Santo é descrito por Paulo como "que sopra pra onde quer, e não sabemos pra onde vai de de onde vem". Age, toca, restaura corações e ninguém tem que receber prestações de contas.

Deus derramou da sua Graça ao providenciar uma fonte de cura, um ponto de sobrenatural para aquilo que não tinha como ser curado. Ele providenciou o "improvidenciável" e por iniciativa própria. Proveu uma fonte de poder sobrenatural, motivado pelo seu amor e não por méritos dos que dela iam aproveitar. Isso é Graça. Deus tomando a iniciativa em favor do homem que sequer O procura.

Alguém pode, com razão, perguntar: se Deus podia curar diretamente (como Jesus o fez mais tarde), porque criar a fonte ? porque não o fez diretamente?

Longe de tentar adivinhar o que Deus pensa ou quis há quase 20 séculos, olhando pra situação dos personagens envolvidos, podemos refletir em algumas coisas.

Isso nos leva para o segundo ensinamento que aprendemos dessa narrativa:


2) Deus esperava que Betesda fosse um exercício de misericórdia e amor ao próximo.

Desde o Éden, antes da Queda, Deus tem demonstrado um grande interesse em compartilhar, deixar participar, o homem em Seus planos. A primeira coisa após dar vida ao homem, foi confiar a ele a manutenção do jardim e a nomeação de cada animal criado. 
Cristo deveria tornar-se carne no meio da humanidade como Jesus de Nazaré, o Emanuel (que significa Deus Conosco). Porém Deus confia a José e Maria a tarefa de instruí-lo, alimentá-lo, cuidá-lo, para que 30 anos depois Jesus estivesse pronto pra Deus transformar pra sempre seu relacionamento com a humanidade.

Obviamente tais planos não são/serão frustrados, mas como um Pai amoroso com seus filhos, Ele se alegra em deixar seus pequenos pegarem nas ferramentas e buscar material. Ele pode fazer tudo sozinho. Ele mesmo providenciou o material e as ferramentas na oficina. Mas ele se alegra ao ver os filhos interessados na Obra de Suas mãos. É patente na bíblia a vontade de Deus em nos fazer participantes, ver-nos interessados pelo Seu Projeto de restauração da humanidade caída e pecadora, "co-participantes no Reino [de Deus]".

Betesda era essa oportunidade ímpar de exercício da misericórdia e do amor ao meu semelhante. Deus Pai providenciou a cena completa. Proveu uma fonte de poder sobrenatural, num local adoecido. Eu imagino Deus olhando pra cena sorrindo, e dizendo aos doentes: "Agora, amem-se ! ". Porque na misericórdia e no amor havia a possibilidade de um desfecho grandioso e belo.

Ao redor da piscina/fonte abastecida pelo tanque de Betesda, havia gente com várias enfermidades/carências diferentes. Cegos, mancos, leprosos, paralíticos.

Perceba algumas oportunidades de misericórdia e amor:

O cego poderia ser "as pernas" daquele que vê, mas é paralítico. O leproso mais capaz ajuda o mais debilitado. A deficiência de um pode ser suprida pela capacidade do outro. Todos são doentes, todos sofrem. Mas juntos, poderiam ter chegado cada um a seu tempo, na água da piscina quando agitada pelo anjo.

O exercício da cumplicidade, do amor ao próximo, poderia ter feito de Betesda uma obra-prima da Graça, uma fonte de vida. Betesda inclusive significa "casa de misericórdia" em aramaico (Beth Hesdah). Mas acabou sendo o retrato do egoísmo humano, da condição humana de pensar primeiro em si e acabar não recebendo nada. Acabou sendo "lugar de des-graça".

Também nenhum dos felizardos a serem curados voltou para ajudar quem ainda não tinha conseguido.Um sinal claro disso está no fato de que um homem esperou 38 anos sem chegar nem ser ajudado a chegar na água.

E ainda, nenhum dos religiosos e piedosos* de Jerusalém tinha a iniciativa ou a compaixão de ajudar algum deles. Certamente que pra um judeu, muitos dos doentes de Betesda eram "impuros", considerados indignos de se relacionar.

Naquele momento, apesar do cenário ter sido preparado por Deus para ser uma oficina de misericórdia e amor, se tornou uma verdadeira "corrida maluca" (como no desenho animado), onde cada um tenta chegar primeiro e se preciso, tirar proveito da deficiência alheia.


3) e aplicando o que já lemos acima: A igreja visível é a Betesda dos dias de hoje, com as mesmas oportunidades e escolhas.

Veja a semelhança direta - um amontoado de gente doente, com deficiências e capacidades, ao redor de uma fonte sobrenatural provida pela Graça de Deus, buscando sua restauração e cura. Pessoas que por si só jamais conseguirão sair de sua situação, e estão todos à mercê da bondade de Deus.

Os doentes continuam existindo hoje - somos nós. Mas não somente os doentes físicos, como de lepra ou paralisia...mas os de coração adoecido, com cicatrizes/feridas emocionais profundas, com traumas dolorosos, com mágoas intensas...os de mente adoecida que não conseguem se relacionar com nada na vida de maneira saudável...os mancos e paralíticos de espírito, que não tem mais coragem de ir pra vida, de sair de seus medos e frustrações...os que foram mutilados na alma por pessoas maldosas...

A fonte sobrenatural continua lá - na reunião dos cristãos, Jesus promete Ele mesmo estar presente, onde quer "que estejam dois ou três".

E Jesus mesmo nos ensina o que Betesda não fez: olhem para o próximo, sejam como o bom samaritano, escolham fazer o bem ao próximo sem distinção. Amem ao próximo como a vocês mesmos. Não apenas evitem fazer ao outro o que vocês não querem que façam com vocês, mas também sejam pró-ativos e façam a eles o que vocês esperam receber dos outros...Dêem comida ao órfão, ao pobre, visitem os aflitos, pacifiquem situações de briga...sejam hospitaleiros e prontos a abrigar quem precisa, pois assim pessoas abrigaram até anjos em suas casas sem saber..."quando dois de vocês orarem concordando com algo, isso vos será concedido pelo meu Pai".

Paulo cita ainda: "orem uns pelos outros para que sejam curados".

Em resumo, a bíblia deixa claro: "ajudem-se mutuamente, busquem o melhor uns para os outros suprindo suas deficiências, compartilhem, sejam interessados na aflição do outro, e eu farei maravilhas entre vocês, derramarei Graça sobre vocês, e será uma festa de cuidado e amor. Aproximem-se do próximo como se vocês fossem Jesus, e como se o outro pudesse ser também, afinal nunca se sabe quando você será o médico e quando será medicado pelo que Eu capacitei o outro.Às vezes eu agirei diretamente. Mas às vezes será no exercício do amor horizontal (ao próximo) que pode estar guardado a sua cura".

Com esse projeto participativo, Deus pretende ensinar ao homem:

Uma responsabilidade humilde - que me torna preocupado e ativo nos problemas e dificuldades do meu semelhante, mas sem sentimento de posse ou superioridade.

E uma humildade responsável - saber me mostrar fraco, aceitar ser abençoado pelo outro, mas sem bancar o coitado nem ser um sanguessuga, um folgado, explorador.

Mas o que será que a igreja está escolhendo hoje?

Será que está agindo como família, como corpo de deficientes se ajudando em amor nas suas poucas capacidades, pra que todos cheguem à fonte curados/restaurados?

Ou será que está escolhendo ser individualista, buscando cada um por si suas bençãos e planos, mas não enxergando que a sua própria cura pode estar, no plano de Deus, no caminho do auxílio mútuo?

Será que a igreja de hoje está buscando a Betesda sonhada por Deus como cenário onde a benção e a cura são derramados num grupo que se ajuda e se vêem como iguais e doentes, ou será que está cheia de doentes orgulhosos tentando em vão chegarem sozinhos a Graça divina?

Na Grécia e Roma antigas, os devotos de um determinado deus pagão grego/romano (por exemplo, Afrodite ou Zeus) ia ao templo do seu deus preferido levar alguma oferenda, barganhar um favor especial ou uma vitória. Ia sozinho e voltava sozinho. Não importava qual dificuldade ou necessidade o outro cara ao lado, devoto do mesmo deus, estava passando ou pedindo. 

Tristemente, vejo muitas igrejas por aí que estimulam com seus cultos e programações muito mais um relacionamento pagão com Deus - onde cada um busca a Deus sozinho e visando ganhar, obter - do que uma visão de corpo doente que busca unido a restauração.

Betesda vem ensinar-nos que a maior conquista possível pra quem é da Luz, de Cristo, é ver a si mesmo como ferramenta útil completando a carência dos outros.

Pergunte-se se você está completando as pessoas ao redor com que Deus permitiu você aprender ou ser...Existem - até mesmo dentro das igrejas - pessoas que precisam de assistência jurídica urgente, e há advogados clamando a Deus para serem usados por Ele...dentistas, médicos, professores, ex-viciados, todos podendo sanar alguma urgência, deficiência ou facilitar a vida do próximo...aliviar uma carga pesada num século como o nosso em que tudo é caro, e todos tentam enganar e explorar um ao outro o tempo todo...

Tanta gente pedindo pra Deus pra ser usado, e não consegue enxergar que oferecer suas capacidades à comunidade (dentro e fora do templo da igreja) com afinco, ética e - porque não, de graça - à quem precisa, e no momento em que mais precisam, é um refresco divino nos momentos de cabeça-quente, de aflição...quantas pessoas poderiam não fazer loucuras ou cometer graves erros se a Igreja de Jesus na Terra estivesse atenta às necessidades dos aflitos...quanta gente não mata ou rouba pra não morrer de fome, chegando até a vender órgãos ou permitir a prostituição de filhas por não saberem outra forma de viver...

E nem me venham com discursos moralistas de "pegar na enxada" porque não vivemos num país e século justos onde todas as oportunidades são iguais e só fica desnutrido, ignorante e pobre quem quer...sabemos quem gira as engrenagens da máquina-mundo...e onde o mundo jaz...os Filhos de Deus são esperados como ministros de Justiça no meio de tanta injustiça e falta de oportunidade.

Seja sal, seja luz, faça da sua vida uma Betesda sonhada por Deus, um lugar de Graça, de misericórdia...



Curiosidades e Notas:

*Piedoso não é aquele que tem "dó" ou "pena". Piedoso é aquele que é zeloso, cuidadoso com as regras (por exemplo, da religião que segue).

A bíblia nem sempre foi dividida em capítulos e versículos como hoje. Atribui-se a Stephen Langton a atitude de fazer cópias da bíblia (ainda manuscritas) dividindo em capítulos (mas ainda sem versículos) em 1290. Apenas 300 anos mais tarde, no séc 16, é que a divisão em versículos foi adotada.

Da Idade Média até o século 19, acreditava-se que esse tanque era fictício e com isso, que a passagem de João 5 não aconteceu e estava na bíblia apenas para passar uma lição. Porém em 1888 durante os reparos na igreja de Santa Ana, construída sobre o local, foi encontrada por Conrad Schick as ruínas do tanque de Betesda/Betsaida, validando o texto bíblico. Ainda restava a dúvida sobre os 5 pórticos com piscinas ligadas a ele. Entendia-se que era uma simbologia remetendo aos 5 livros da Lei judaica (Torá). Porém em 1956 os pórticos foram encontrados pelas escavações. Portanto, passagem confirmada cientificamente.


Ruínas das piscinas de Betesda

Na maioria das bíblias os versos 3 e 4 possuem partes entre colchetes [ ], indicando que não são todos os manuscritos antigos que possuem esses versos. Porém podemos incluí-los sem preocupação pelo fato de o verso 7 fazer referência à cura (verso 6) e a agitação das águas.

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