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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Onde vivem os monstros - de Pokemón ao mal da humanidade


Onde vivem os monstros?

No mês em que escrevo isso há uma controvérsia muito grande em relação ao recém-lançado "Pokemón Go", um jogo de celular da Nintendo, do tipo realidade aumentada[1], em que os jogadores devem caçar os monstrinhos pela cidade, para criá-los, treiná-los e depois colocá-los para batalhar contra o monstrinho dos outros jogadores. Sim, eu conheço bem pois assisti quando o desenho chegou ao Brasil nos anos 90.



Há algumas polêmicas dentro do público secular e dentro do público evangélico.

Em relação às questões do público secular, as questões giram em tordo da distração excessiva, mortes e acidentes, invasão de privacidade e benefícios de socialização e exercício físico (desde pessoas que emagreceram vários quilos até quem tenha desmaiado de exaustão).

De maneira sucinta em relação às questões seculares.


  • Há anos pedestres com fone de ouvido e olhando para baixo na tela do celular atrapalham o transito dos carros, quando não são os próprios motoristas a usar a telinha.
  • Acidentes e mortes por selfies vitimaram mais em 2015 do que ataques de tubarão no mundo.
  • A invasão de privacidade colhendo imagens, posição geográfica e afins já era feita sem consentimento há anos por agências de inteligência (do contrário Edward Snowden estaria tomando cerveja em casa nos EUA agora). Hoje em dia muitos de nós fazem isso voluntariamente ao fazer check-in em aplicativos como FourSquare e Facebook.
  • Roubos de celulares já aconteciam, bem como falta de cuidado com ele. São usados com telas cada vez maiores, em bolsos traseiros de calças, em decote de blusa, etc.


Logo, não se trata de um apocalipse de zumbis cuja culpa é do Pokemon Go. Os zumbis já existiam, e esses problemas também. O que o aplicativo fez foi trazer uma boa parte deles para fora dos apartamentos, condomínios e escolas, pra andar um pouco em bandos.

Por isso vemos uma onda tipo "The Walking Dead" pela cidade, shoppings e afins. Mas a turma do twit, zap, insta e snap já zumbizava separadamente. O problema da realidade aumentada é que ela cria uma percepção difusa para uma geração acostumada a um mundo virtual - eletrizante e infinito - agindo agora no mundo real - onde as decisões custam, dóem, machucam e cansam. A mente está no virtual e o corpo no real. A interface ficou mais fina entre os dois mundos.

Veja, não estou fazendo um juízo de valor - o jogo em si não é mau, mas é preciso conscientizar as pessoas para não perderem a noção de si, e lembrarem dos pontos importantes que a vovó te dizia: olhar pra frente e para os lados, não 'dar mole' pra bandido, ficar de olho nos seus pertences, etc.

Mas distrações digitais nunca nos faltaram nos últimos 10 anos. As pessoas já ficavam alienadas em festas em suas redes sociais, almoços de domingo e afins.

Uma perda de tempo de gente idiota? Feche seu Candy Crush por um momento e reflita.

Mas o que me importa mais hoje são as querências do mundo gospel e  a partir delas, entender o que a fé cristã tem a explicar a sensação da visão secular.


O pecado não mora ao lado

Pokemon Go é do diabo? é fonte de pecado? um cristão pode jogar isso?

Num outro post mais antigo, eu já comentei sobre o pecado. Todo costume que em sua vida mata, rouba e destrói algum pedaço dela é um filho entre você e seu maior inimigo, o diabo. Ele mata, rouba e destrói como o pai (o diabo), mas tem a sua carinha, pois nasce e sobrevive através de preferências pessoais, vícios adquiridos, coisas que você adora, com as quais você se delicia. - e muitas vezes usa para fugir de si.

As vertentes mais 'acaloradas' do cristianismo (em geral pentecostais e neopentecostais, normalmente identificados na mídia como 'evangélicos'[2]) tem uma pré-disposição para reações vigorosas, midiáticas e extremistas.

Assim já foi com a televisão nos anos 60-70, com o videogame de console nos 80-90, Viagra, a internet popularizada a partir de 2000, o smartphone em 2007, o Orkut, Facebook, e por aí vai...

A cada nova ferramenta, um novo escândalo acontece dentro de muitas igrejas. Todas identificadas como 'a nova investida de Satanás contra o povo de Deus'.

Ironicamente, hoje temos canais de TV gospel, sites cristãos, aplicativos evangélicos, e páginas de Facebook são disputadas e mantidas por artistas do meio gospel. Não eram esses os instrumentos do diabo, malignos por si só?

Jesus mesmo nos alerta que o mal, a contaminação, não vem do que comemos (ou seja, não vem de fora do homem) mas sim do interior do homem (Mateus 15 e Marcos 7).
Não é a TV que nos corrompe, é o que o nosso coração corrompido extrai e procura ao assistir e trocar de canal.

Tiago, irmão de Jesus, alerta em sua carta (Tg 1) que caímos, pecamos, porque nos deixamos seduzir pela própria concupiscência (corrupção) da nossa carne (natureza). As armadilhas do diabo (e ele não tirou férias, diga-se) não nos laçam na corrida como um novilho num rodeio. É a nossa natureza corrompida que se delicia com a corrupção oferecida pela armadilha, se encanta com o perfume da armadilha, e nós mesmos nos laçamos.

Somos novilhos suicidas, voluntariamente cedendo ao peão demoníaco. Por isso, como diz Tiago, cada um é tentado e seduzido de um jeito, e cai por causa da sua própria fraqueza.

Mas nunca admitiremos isso, pois outra característica humana é o orgulho.

O ser humano tem uma capacidade ímpar de transferir suas responsabilidades. Desde Gênesis, no Éden. A culpa não é de Adão, ele a coloca sobre a mulher, que lhe ofereceu o fruto proibido. A mulher a joga para a serpente, que não tendo mais ninguém após si, tem de assumir a primeira bronca divina. Mas na narrativa, Deus não compra essa idéia e os dois humanos são culpados igualmente.

Personificar o mal é cômodo, dispensa-nos do envolvimento com a situação. Identificar todo o mal em algo fora de nós faz com que sejamos subtraídos da equação dos problemas. Mas somente na nossa consciência auto-enganosa.

É o PT sozinho representando toda a corrupção brasileira. É Lula e Dilma sendo o novo casal edênico[3] por onde o pecado da corrupção entrou no Brasil [4]. Mas certamente não é o troco a mais não devolvido, a pontuação da CNH transferida para um parente, certamente não é a pergunta do vendedor dizendo "quer que marque quanto na nota?".

Esse mecanismo é de distração e ignorância. O fruto de Eva, a TV e o novo aplicativo não são satânicos em si. É o ser humano que tem o "toque de Midas invertido".


Conta a mitologia que o rei da Frígia (hoje Turquia) Midas, tinha o dom dado pelos deuses, de transformar tudo que tocava em ouro. O ser humano faz o oposto - todo tesouro que toca, corrompe e faz veneno para si próprio.

Os satélites que nos unem também nos vigiam. Os veículos propulsores que os colocaram lá são os mesmos que levam mísseis militares.

Esse efeito de Midas invertido vem da rachadura interna que temos em nossa natureza desde o evento do Éden. Somos bipolares desde o ventre materno. Sei que há psicólogos e antropólogos que acreditam no mal como construção social, porém a leitura cristã é de que o mal não vem de fora, e sim que o conjunto de humanos é corrupto. Ou seja, ficamos maus não por causa de um conjunto corrupto de humanos, mas por tal conjunto aflorar e amplificar a corrupção nativa, latente na nossa natureza.

A história da Humanidade comprova isso, no quanto somos capazes de feitos maravilhosos e benéficos, e atos horrendos e temíveis, de extrema maldade, e até mesmo no quanto nossas figuras famosas e ídolos da História são controversos. Fazemos antibiótico penicilina (Sir Alexander Fleming) e massacre de humanos Auchwitz na Polônia.



As Cruzadas na Idade Média, refletem bem essa rachadura. Sob o propósito de livrar Jerusalém das mãos dos muçulmanos, na verdade foi usada de trampolim social para adquirir títulos nobres, remir pecados (a igreja daria indulgência a quem servisse o Papa por X anos) ou pagar dívidas para com o Vaticano...motivações essas bem distantes do original. E no fim das contas, serviu para que os mesmos cavaleiros deixassem um rastro de invasões não-autorizadas, saques, estupros e matanças gratuitas pelo caminho.


Henry Ford inventou a linha de produção padronizada, ao mesmo tempo em que era anti-semita e tinha um bom relacionamento com Hitler (que o admirava).
Einstein foi brilhante mas não foi capaz de nutrir emocionalmente suas esposas e filhos.

Em biografias de figuras históricas, como grandes atores, revolucionários e ativistas, veremos que sua vida não foi 100% bondade e compreensão.

Essa rachadura do coração pecaminoso humano é bem representado no livro das leis cerimoniais dos judeus, destinadas ao pessoal da tribo de Levi - o famoso livro de Levítico no Antigo Testamento - aparece a tratativa para expiar pecados da época (capítulo 16).

Dois animais eram sacrificados absorvendo a culpa da pessoa - um cordeiro, manso e imaculado, e um bode, rebelde e arisco em chifradas (daí a expressão 'bode expiatório') É a representação do nosso interior rachado. Uma parte boa, criada por Deus, residual do que éramos antes de Adão, e a má, corrupta e natural humana.

Ao longo de um dia inteiro, temos momentos de cordeiro e momentos de bode.
Nossas motivações nem sempre são lógicas, mas muitas vezes são egoístas, maldosas, preguiçosas ou interesseiras, mesmo que inconscientemente.

É por isso que ser politicamente correto, lógico e eficiente dá tanto trabalho e requer um tremendo esforço mental e emocional - e normalmente não dura muito. Ser civilizado e cordial é cansativo.

Entendemos como cristãos que essa natureza corrompida só se altera com influência externa, a saber a ação de Deus no coração do homem, dia a dia, pouco a pouco, para que diminua o bode e aumente o cordeiro - até que sejamos como o Cordeiro de Deus (Agnus Dei, em latim), Jesus o Cristo, modelo não rachado para a humanidade.

Essa rachadura nos faz Midas invertidos, nos leva a corromper tudo que tocamos. Senão num primeiro momento, em algum momento mais tarde. Se não abertamente, certamente na intimidade. Se não quando em minoria, certamente de maneira violenta e agressivamente corrupta quando em bando.

Nossa única defesa, enquanto seres humanos, é o Espírito Santo de Deus invadindo e consertando dia a dia, pouco a pouco, nossa natureza de bode, rebelde, imersa e escrava de suas próprias paixões.


Sem intervenção externa, não saímos dessa condição, como diz o antigo profeta Jeremias, repassando o recado divino aos de Jerusalém: "pode um tigre mudar as suas listras ou o etíope mudar a cor de sua pele? da mesma forma vocês são incapazes de parar de pecar. Enganoso é o coração do homem, e desesperadamente corrupto. Quem o conhecerá?" (Jr 13:23, 17:9).

Por isso qualquer estrutura, sistemática ou ideologia que brote ou seja aplicada por humanos tende a se corromper ao longo do tempo. Nem a igreja, que é algo planejado por Deus pra ser uma comunidade de fé e cuidado mútuo, escapou da imperfeição e do toque de Midas dos seus realizadores humanos. Apenas 400 anos depois da crucificação de Jesus, o plano de ser uma família na fé sem divisões nem carências, já havia perseguido judeus, já estava fortemente dividida entre clero e leigos, e fazendo pactos com o império romano. Foi preciso mais 1000 anos [5] até a Reforma Protestante começar um movimento de restauração e purificação. E de séculos em séculos grupos decidem parar e reformar-se novamente, removendo excessos e deturpações de suas práticas.

Há quem use o espaço da pregação nos templos para alfinetar membros da igreja. 
Há quem use o louvor para realizar seu ego e sua reprimida vontade de ser artista.
Há quem use a frequência na igreja de domingo a domingo para esconder sua incapacidade de lidar com a vida pessoal destruída.
Há quem use os dízimos e ofertas financeiras para fins próprios, e reforme e amplie as dependências da igreja para deixar para si um legado.

Por isso, quer seja Pokemon Go, quer seja Facebook, quer seja reunião de estudo bíblico, tudo que cai na mão do homem pode ser usado de maneira desonrosa, corrompida, tendenciosa. Se houver tempo suficiente, será.



E é aí que vivem os monstros. Assim como no livro de Maurice Sendak [6], "Onde vivem os monstros", vamos descobrir que os monstros que devemos caçar estão não fora de nós, nas novidades tecnológicas ou nas ferramentas disponíveis, mas sim dentro de nós - e esses sim, tornam tudo que tocamos em veneno, em droga e em fuga.


Notas e comentários:

[1] - Realidade aumentada: recurso tecnológico em que, através de visores e sensores, coisas do mundo real são percebidas misturadas ao mundo real, seja para fins úteis (um GPS mostrando no vidro do carro setas de onde virar) seja para fins recreativos (como o jogo Pokemon Go) como por exemplo, mostrando no painel do carro ou num óculos 3D onde há bons restaurantes ao redor.

[2] - Aqui a mídia sempre faz confusão - os cristãos não são todos iguais, e há linhas teológicas e de entendimento diferentes. Aquilo que a maioria chama de "evangélicos" são na verdade uma variante, chamada de pentecostalismo e neopentecostalismo. Normalmente são mais fundamentalistas, literalistas, não raro com limitações e restrições quanto a alimentação, vestuário, etc. Muitas possuem programas de TV, rádio, etc e normalmente abrem pequenos pontos de pregação, com o costume de gritar em alta voz e de maneira bem 'incisiva'. Diferem portanto dos chamados "protestantes históricos", como presbiterianos, batistas e metodistas, que normalmente são mais cosmopolitas, contextualizados e de cultos mais sóbrios e clássicos (com hinos, coral, pregação mais temperada, etc). Eu que vos escrevo, sou presbiteriano.

[3]- Edênico - adjetivo que significa "do Éden" ou "que diz respeito ao Éden"

[4] - Não acredito que somente o PT tenha elementos corruptos, nem que a totalidade do PT seja corrupta. Porém creio firmemente que os governos Lula e Dilma tiveram medidas populistas (as que visam aumentar a popularidade) irresponsáveis em termos de orçamento, e que dentro da tradição política brasileira, eles "não souberam brincar" - desvios mudaram da casa de dezenas de milhões para dezenas de BILHÕES - e por isso foram colocados pra fora do "clube".

[5] - Grosso modo, mas durante toda a história da Igreja Cristã houve movimentos isolados de gente querendo consertar excessos, fazendo "pequenas Reformas". Lutero mesmo não foi o pontapé inicial, antes dele outros já se levantavam contra excessos da única igreja institucional disponível - a Católica Romana.

[6] - Nesse livro maravilhoso e profundo, o menino Max é transportado durante seu castigo por malcriações, para um mundo onde vivem criaturas que o empoderam como rei e onde ele pode fazer o que quiser, sem castigo ou limites, e os monstrengos o seguem, imitam. Quando as coisas fogem ao controle, ele percebe que cada uma delas é na verdade um defeito seu personificado. Ele vê que os monstros estavam nele, e eram ele. Um filme memorável, vale a pena assistir e refletir.

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