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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

A Bíblia e Dom Casmurro


Uma vez me disseram que Dom Casmurro era um livro insuportável, e que em breve quando eu chegasse no colegial (o ensino médio) chegaria a minha vez.

O dia chegou, a professora  - a Dona Vanir - passou a lista do que cairia na "prova do livro" e nesse momento finalmente me vi na "milha verde"[1]. Depois de pegar o tomo na biblioteca, senti que a escola me fazia ser o meu próprio carrasco e levar meu Machado pra casa para me golpear pra passar em Português [2].

E aí começou a leitura. Algumas páginas depois, eu entendi porque esse sujeito do bigode se tornou imortal e pedido nas escolas 90 anos depois de morto. Uma leitura densa, personagens sólidos e aquela dúvida se amamos ou odiamos Capitu, se nos solidarizamos ou nos revoltamos com Bentinho. 

Eu amei o livro. Não consegui mais ler outros livros do mesmo jeito. Parecia que eu havia experimentado uma comida maravilhosa e agora iria comparar tudo que comesse a essa comida. Meu padrão de exigência se elevou para ler e também para escrever. E não temos muitos Machados de Assis na História. Mas ainda bem que Graciliano Ramos trouxe Vidas Secas (e meu conto preferido, A Hora e a Vez de Augusto Matraga).

Esta capa com a cadela Baleia é demais

O que aconteceu na verdade foi que eu não conhecia o Dom Casmurro. Eu tinha um conhecimento genérico, popular. Eu sabia o que falavam dele. Eu sabia o que diziam que era e do que se dizia se tratar. E isso não apenas me afastava da incrível experiência de conhecer os "olhos de ressaca" de Capitu, como era uma injustiça com o Machado.

A segunda grande mudança que passei foi em 2020 durante a 1a onda da pandemia, em que a empresa nos pediu para trabalhar de casa. Em Abril de 2020, aceitei o desafio do Pr Isaías de Goes num culto online sobre ter um momento a sós com Deus todo dia, e passei a olhar pro outro livro que me acompanhava de perto num caso quase platônico - a Bíblia.

Resolvi ler o que eu pudesse por dia, todo dia pela manha antes de trabalhar. Não ter que dirigir me dava 30 minutos a mais todo dia. A leitura começou como tinha que começar: Gênesis 1. Do lado um caderno para anotações, e uns lápis para marcar o texto ou anotar.

Dezembro de 2020 terminei Apocalipse. E então percebi algumas coisas que compartilho abaixo:

1) A Bíblia era meu Dom Casmurro espiritual.

Em 22 anos de conversão desde o batismo e profissão de fé eu nunca tinha lido ela como um todo, como uma história contínua.

Eu havia lido trechos dispersos e espalhados aqui e ali, selecionados durante uma pregação ou uma aula na Escola Dominical. Como se a Bíblia fosse um álbum de fotos cheios de recortes de jornal ou notícias fixadas nas páginas. 

Claro que eu saia que as coisas faziam parte do mesmo todo. Mas os versículos andavam na minha cabeça sempre em bando, com camisetas temáticas do tipo "salvação", "dízimo", "pecado", etc. Eu conhecia a escalação todos esses times e seus jogadores, mas não via nenhum campeonato na minha vida.

Após ler por inteira a Bíblia, as camisetas ficaram apagadas. Elas viraram uma torcida organizada única. Eu percebi que quando me perguntavam (ou eu me questionava) sobre algo, meu cérebro não buscava o que eu havia lido da Bíblia, mas o que me disseram que ela falava.

Em 22 anos de "crente" eu nunca havia lido a Bíblia como um indivíduo. Eu percebo hoje que eu "lia" os textos a partir de Lutero, a partir de Calvino, a partir da pregação do pastor X ou Y. 

Assim como fizeram com Dom Casmurro, eu apenas repassava o que ouvia sendo pregado, o que escolásticos haviam interpretado, mas não o que eu havia entendido.

Eu sabia explicar a partir dos esquemas e ligações propostos pelos nomes famosos da Reforma, repetindo a formulinha de versículos específicos combinados. Mas não a partir da minha própria vida - muito menos da minha prática diária.


2) uns 80% do conteúdo estão muito evidentes e não requerem muita explicação

Mas só com esses 80% já tem um caminhão de coisas pra resolver, melhorar e repensar sua vida e sua rotina. Os demais 20% não são descartáveis, mas dá muito bem para ir aprendendo e se aprofundando aos poucos com o tempo. 

A imensa maioria dos nossos problemas como igreja e como cristãos está no relaxo com esses 80% auto-explicativos, que não dependem de pastor nem de teologia para aplicar no seu dia-a-dia.

3) desses 20% restantes, uns 5% são passagens que nem os teólogos se entendem, mas não são decisivos

São trechos debatidos há séculos e não encontram uma explicação única e suficiente. Mas em nada interferem no "core", no coração da sua vida íntima com Deus (que estão nos 80% citados). 

4) Os grandes nomes intocáveis da Reforma como Lutero e Calvino, bem como vários Papas e teólogos famosos fizeram coisas absurdas e incoerentes com os 80% citados acima. 

Não adianta dizer que eram "homens do seu tempo" porque o padrão esperado por Jesus nesses 80% são atemporais, valiam para os apóstolos e valem pra mim hoje. Esses caras tinham acesso aos textos bíblicos no original em grego, latim, hebraico, e sabiam interpretá-los sem traduzir. Mais desculpáveis eram os plebeus que não sabiam ler e dependiam do clero "explicar" o que supostamente a Bíblia dizia. Assim como todo humano pecador, eles tiveram grandes "insights", grandes sacadas e algumas pregações brilhantes. Mas não devem ser reverenciados ou seus textos levados em pé de igualdade com a Bíblia.

Não o se justificam por nenhum texto bíblico as Cruzadas, a Inquisição, a Contra-Inquisição, a Guerra dos 30 anos na Alemanha, entre católicos e protestantes, o terror do Consistório de Calvino em Genebra (com as torturas de Jacques Gruet e Miguel Servetus, pra citar apenas 2), ou a escravidão nas Américas. Isso é mau-caratismo disfarçado com verniz religioso. O mesmo vale para a igreja ao se associar a ditaduras ou levantes revolucionários.

5) Muitas categorias ou tópicos indiscutíveis ficaram muito menos "óbvios" no tocante a grandes temas da teologia, muito mais borrados e muito diminuídos quando falamos de prática. Em outras palavras - seja por "aceitar Jesus" ou "ter sido convencido a aceitar por ser eleito", a ordem e a prioridade escrita continua a mesma: mudar de vida, re-significar as coisas, re-educar seus relacionamentos e imitar a Cristo, tornando a vida sua e das pessoas ao redor mais saudável, mais agradável a Deus, e passando isso adiante. 

O que passar disso é "discutir sexo dos anjos", é discutir ao lado da maca se o paciente está morrendo de infecção ou infarto - sem salva-lo. É gastar neurônios e tempo com mecanismos celestiais que não temos acesso direto. O que temos são ordens e exemplos diretos de Jesus. A Bíblia é a Palavra revelada, é a revelação suficiente para mudarmos de vida e conhecermos a Deus.

O que se vê hoje em dia é como alguém que tendo um livro de receitas, não faz um bolo sequer mas tenta extrair como os ingredientes se harmonizam ou quantas calorias o bolo terá. Mas bolo que é bom, não sai, não nutre, não acontece.A bíblia como desodorante, debaixo do braço até a igreja e volta. Pode estar perto do coração mas pra passar do sovaco pra dentro, é só lendo e aplicando mesmo.

Em 22 anos tudo ficou anestesiado na mesma. Porque? Porque há essa lenda de que a Bíblia é complicada, longa, e só gente "estudada" em teologia sistemática consegue juntar as peças. 

Desconfio que parte disso se deve a alguns fatores que acabam por causar uma fragmentação do conteúdo em pedaços na nossa cabeça:

  • A terceirização do estudo bíblico, que a igreja normalmente relega ao pastor e aos professores da escola dominical (isso quando existe uma). É ele que tem de ensinar, não eu que preciso ler ou buscar saber. E os pastores acabam se dividindo em 2 tipos: os que se viciam em ser a figura central, e os sobrecarregados que gostariam de ter uma comunidade mais madura e sedenta de Bíblia, mas tem que ficar apagando incêndio de membros que só se alimentam da Palavra através da pregação dominical.

  • A milenar tratativa do Reino de Deus através de temas separados como "salvação", "eleição", "pecado", "fé", a partir de um sistema específico (calvinismo, por exemplo) sem estimular primeiro a leitura do "manual" (a Bíblia) por completo.

  • A tradição de fazermos pregações expositivas em cima de um trecho (uma perícope), nem sempre sequenciais. Um domingo se lê um trechinho de Lucas 4 e no outro João 8, depois Levítico e assim por diante. Ou ainda sequencias "temáticas" de 4 domingos em que recortamos a Bíblia a partir de um assunto, pinçando os versículos que corroboram com o tema.

  • A desconexão mental que persiste, entre vida religiosa e vida secular - como se a existência da Bíblia fosse apenas para dar a nós um conteúdo para ouvirmos e celebrarmos todo domingo, mas não se conectasse ao nosso dia-a-dia nem exigisse obediência fora do culto.
Eu não estou querendo dizer que teologia é perda de tempo, ou que é inútil estudar mais a fundo, ter uma boa hermenêutica e exegese, buscar as camadas do texto com contexto histórico, costumes, geografia, etc. Isso enriquece o texto e o aviva. Os pastores devem se valer disso tudo para avivar e abrilhantar o texto à luz de uma comunidade que precisa andar por si, como um pai que ensina a nadar, não para ser um constante salva-vidas ou apoio para o filho ir na parte mais funda da piscina.

Minha revolta, meu incômodo após minha experiência de leitura completa, é que a maioria das igrejas tem sua vida espiritual prática raquítica, atrofiada. Discutem-se as receitas mas o bolo não sai. Cumpre-se a liturgia, canta-se, lê-se o texto, mas as pessoas deste domingo continuam iguais ao que eram no domingo passado.

É necessário um discipulado sério em que uma curva de intimidade com Cristo cresça (ainda que com altos e baixos, mas sempre pra cima), que o exemplo Dele seja seguido, dando aos 80% importantes pelo menos 80% do nosso esforço em comunidade.

A igreja sofre com uma crise de práxis (botar em prática em si mesmo e ao redor). Nada chama mais a atenção do que uma vida transformada de verdade. Sem isso, vemos o que temos visto: estratégias de marketing, de branding (às vezes até de Coaching), com camisetas, logotipos, movimentos e ministérios que precisam crescer sem alimento. O melhor banner de propaganda do evangelho são cartas vivas. 

Deixo vocês com o pensamento de Joseph Campbell, estudioso de mitologia e estruturas narrativas, no seu livro "O Poder do Mito" (que explica como contos como Star Wars e Harry Potter se tornam imortais e nos cativam):

Pregadores se equivocam, quando tentam persuadir pessoas à aderir a fé ; fariam melhor se revelassem ao mundo a radiância, o entusiasmo de sua própria descoberta


Notas:
[1] referência ao filme "À Espera de um Milagre" de 1999 com Tom Hanks
[2] não pude me conter com o trocadilho