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sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Uma cesta de problemas


Às vezes, as pessoas se inscrevem em programas, assinaturas e grupos por causa de uma pequena parte. Pode ser que você também já tenha assinado um streaming (Netflix, HBO, Amazon, etc) ou assinado TV a cabo só por causa de uma série favorita ou um canal que te interessa.

Tem vezes que eu penso em comprar uma caixa de bombom só por causa do Caribe, aquele bombom de banana, sabe?

Mas nem sempre é prudente comprar uma cesta básica inteira por causa de um produto específico. Venha pensar comigo.

Já conversamos em um outro post, sobre a nossa cidadania depois que aceitamos andar com Jesus. Mantemos a cidadania do nosso nascimento (brasileiro, alemão, etc) mas passamos a ter uma cidadania superior a essa - quando nascemos de novo em um novo Reino. Se você ainda não viu, corre lá, leia e depois volte aqui.

Para com a cidadania terrena, já vimos que temos que orar e interceder pelo país e autoridades, respeitar as leis vigentes, sermos exemplares na conduta, exceto nos momentos em que a lei terrena implique em contrariar uma lei divina.

Existem pessoas que vivem como se tivessem apenas a cidadania terrena, vivem sem prestar atenção ao que exige o passaporte do Reino de Deus - mesmo que muitas vezes sejam presentes na igreja, são cidadãos do Reino apenas no domingo, por 2h durante o culto.

Porém eu gostaria de falar sobre o outro lado da moeda. Quando as pessoas erradamente confundem as duas cidadanias - a do Reino e a civil - como se fossem uma coisa só e equivalentes em importância.

Mantenha o ouvido e a mente abertos, pois essa reflexão não é sobre esquerda ou direita. Eu quero discutir o quanto temos certeza de estarmos usando bem a mordomia do que Deus nos deu, em prol do Reino Dele - e por nenhuma outra causa. E é "facinho, facinho" de perdermos o alvo.

Muitas vezes, os movimentos humanos tentam grudar no Evangelho um sentido ideológico, político, como se fosse um sinônimo. "Pensou na nossa causa/bandeira/partido, pensou em cristianismo". Como se uma coisa automaticamente levasse à outra. Como se para comprar feijão, você precisasse comprar a cesta básica toda e consumi-la.

Ou então lideranças religiosas que, em troca de apoio financeiro, apoio às pautas morais, ou proteção contra a pressão dos costumes "do mundo", acabam procurando o poder político - mesmo que os tais políticos/partidos tenham histórico questionável, condenações ou sejam investigados por envolvimento com coisas/pessoas erradas.

Historicamente isso nunca funcionou bem. Claro que poderíamos falar aqui dos clichês, como as Cruzadas, ou a indecente barganha que a Igreja na Idade Média fazia para validar reis em troca de ter proteção, influência e tributos. Ou mesmo reformadores protestantes que causaram um inferno na vida daqueles com divergências teológicas.

Mas essa confusão entre projeto político e cidadania do Reino já vem muito antes das Cruzadas, na verdade desde o momento que Jesus inicia seu ministério.

Desde os tempos de Jesus

As autoridades do Templo conspiraram contra Jesus pois a agitação popular atrairia a atenção do império romano (Jo 11:45-50), atrapalhando a relativa autonomia que gozavam junto aos romanos, o pequeno poder regional que acumularam iria se esvair.

Nao por acaso, outro personagem da mesma época aparece com suas motivações políticas fundidas com as religiosas - Judas, o traidor. Ele era chamado de Iscariotes - o mais próximo que os falantes de latim de Roma conseguiam chegar da palavra "sicário". Os sicários eram uma divisão extremista dos nacionalistas zelotes, eram rebeldes separatistas, que queriam a independência e o fim do jugo romano, e andavam com adagas escondidas (chamadas de 'sicar') com o qual cometiam atentados discretos nas ruas e becos, especialmente contra as autoridades romanas e outros judeus "traidores" que ajudavam os romanos, causando medo, eram revolucionários que praticavam terrorismo, para deixar qualquer guarda romano preocupado de sair de casa.

Adaga sicar, usada pelos terroristas

os sicarios eram os terroristas da época


Quando Judas percebeu que o movimento no qual ele era parte não iria para a direção da revolução, da revolta popular contra Roma, tratou de negociar sua traição com o outro poder vigente - as autoridades do Sinédrio. Para ambos, Jesus e o Reino eram empecilhos, mesmo que o projeto político de Judas fosse oposto ao Templo (um queria manter a "boa relação" com Roma, outro queria separar-se dela).

E para o Sinédrio, era plenamente aceitável quebrar várias leis do Reino, vários princípios morais, em nome do seu projeto político: financiar uma traição, agredir e condenar um inocente, terceirizar a execução de morte para os romanos dando falso testemunho, subornar os guardas para que mentissem sobre a ressurreição do corpo de Jesus, coagido um cego recém-curado (veja nas referências no fim do texto). A Lei de Moisés proibia matar, mas Judas também estava disposto a ignorar esse mandamento em prol da sua visão político-religiosa. Quando o homem busca fora do Reino uma forma de implementar o "reino de Deus" do seu próprio jeito, acaba passando por cima das regras do próprio Reino que ele diz defender.

Em ambos os casos, a cidadania principal - a do Reino - foi rebaixada e misturada com o projeto político-civil que tinham em mente. O sinédrio defendia a continuação do regime opressor, e Judas era o que queria a revolução social, derrubando o opressor, mesmo que a custa de sangue e medo.

Nós vemos também no caminho para Emaús, o lamento dos dois homens que não perceberam Jesus andando com eles. Lamentavam pois achavam que Jesus era o Ungido de Deus que iria redimir, resgatar Israel das mãos dos romanos, como um novo rei Davi, guerreiro e vitorioso. Eles não esperavam um messias cordeiro, sacrificando-se. Como a expectativa deles estava muito carregada de significado político, não foram capazes de enxergar o Mestre. Só o perceberam quando Ele lembrou a eles o que importava no Seu Reino, quando partiu o pão e deu graças. O Reino não era político, visível, com exército e bandeira. Era um Reino que crescia no coração das pessoas, no partir do pão, na vida diária correta, como um fermento que vai levedando toda a massa.

O próprio apóstolo Pedro, zelote que era, também via o Reino com olhos politizados - a ponto de atacar Malco, o assistente do sacerdote durante a captura de Jesus no Getsemani, e arrancar a orelha de Malco. Ao que Jesus repreende, cura a orelha cortada, e diz : "se eu quisesse, pediria ao meu Pai para mandar 12 exércitos de anjos para nos defender" ou em outras palavras "não é esse o meu projeto, não é assim que o Reino funciona". Pedro também teve que aprender que o Reino veio para os gentios, e não apenas para Israel - no famoso episódio de Cornélio, na visão de lençóis cheio de seres rastejantes e impuros.

Pedro ainda teve mais um episódio, em Mc 8 quando, logo após reconhecer que Jesus era o Cristo Filho do Deus vivo, também repreende Jesus discretamente, quando Ele anunciou que haveria de morrer. Ao que Jesus diz "Arreda-te Satanás! Pois você não está preocupado com as coisas de Deus, mas com as coisas dos homens". E ao ligarmos esse episódio com Emaús e o Getsêmani, é bem provável que Pedro estivesse repreendendo o anúncio da morte de Jesus em nome da retomada do poder, do Ungido vencedor, do novo Davi - da esperança política dos judeus. Em outras palavras, "Ei Mestre, não fale assim, o senhor não vai morrer, o senhor tem que libertar Israel".

É justo comentar: os judeus entendiam desde os tempos do Antigo Testamento, a noção de povo escolhido, religião e nação como uma coisa só. Através da circuncisão e conversão, qualquer pessoa passava a ser parte da vida religiosa e da vida civil. Nao havia separação naquela época. Porém na Nova Aliança, o Reino deixa de ser visível em terras conquistáveis, ocupáveis, para ocupar metros quadrados nos corações de gregos, romanos, judeus, samaritanos e brasileiros como eu e você.

Nao é mais um projeto político e civil. Esse projeto parou em Salomão - dali pra frente seus descendentes pecaram tanto (vide os relatos de Isaías e Jeremias) e foram tao violentos, que o reino se dividiu em Norte (Israel) e Sul (Judá), e Deus entregou ambas para o cativeiro - pelos impérios assírio e babilônico. Depois foram subjugados pelos Persas, e por último pelos gregos (macabeus) antes de Roma.

Mas ao invés de converterem-se dos maus caminhos, mudar de rota e arrependerem-se, as gerações perversas depois de Salomão preferiram confiar na ajuda política do Egito, e falharam miseravelmente.

O caso da Prússia

Prússia começou pequena, em vermelho e chegou a dominar quase toda a Alemanha
A Alemanha historicamente nunca foi unificada. Por séculos, a divisão entre leste e oeste era forte, muito antes da Guerra Fria, Muro de Berlim, ou mesmo da Reforma. As regiões do Oeste (Colônia, Mainz, Frankfurt, Düsseldorf, etc) sempre foram alinhadas com o ocidente, amigas dos EUA, da Inglaterra, cheias de comércio e muitas indústrias - e historicamente, também muito católicas. Essa região chamava-se desde antes de Cristo, de Germania. Durante as Cruzadas, uma parte da Ordem Teutônica dos Cavaleiros (a versão alemã dos Templários) se alocou no nordeste da Alemanha formando um novo estado - a Prússia. Esse estado formado por ex-cavaleiros e nobres sempre foi da agropecuária, com muitos títulos mas sem dinheiro, sem indústria, mas extremamente militarizada, agressiva, defensora das estruturas tradicionais da época dos reis (Kaiser). Os Junkers, como eram chamados os nobres da Prússia, gostavam de andar armados, uniformizados, duelar - com revólver ou na espada - em nome da honra e das tradições. Eles odiavam o Oeste cheio de dinheiro e apoiadores dos ingleses. A Prússia considerava a Germania um bando de frouxos, burocratas almofadinhas, traidores da pátria, puxa-sacos dos estrangeiros, aliados da França, Inglaterra, e vendidos sob a influência do Papa. Nao eram "alemães de verdade".

Junkers da Prússia

A Prússia se via como a defensora do nacionalismo, e como forma de banir influências externas, ela adotou no seu "pacote" o protestantismo - segundo eles, a verdadeira religião do "alemão raiz" deveria ser um cristianismo genuinamente alemão (de Lutero), sem as "terríveis influências de Roma e dos judeus". Assim, a Prússia criou uma ligação que confundia fé com patriotismo alemão. Ser prussiano era ser automaticamente protestante, e vice-versa, não tinha mais a ver com a identificação pessoal, era praticamente uma obrigação cultural.

Como se pode ver, a Prússia era a versão 1.0 do que seria o Nazismo 60 anos depois: nacionalismo exagerado, fascínio por fardas e militarismo, um forte anti-semitismo, mau uso das patentes ("sabe com quem você está falando?"), um forte discurso pela tradição e contra "o declínio da sociedade moderna" - enquanto na prática eram agressivos, autoritários. Olhar para Otto von Bismarck da Prússia e sua trajetória política, é ver uma versão século 19 do "bigodinho da suástica" do século 20.

E essa cooptação do protestantismo como "religião do alemão de verdade" seguiu forte até os anos 1930, quando o "bigodinho" subiu ao poder. Pra nossa tristeza, o fator que desequilibrou a eleição de 1933 foi justamente o voto dos estados de maioria protestante. Apenas 17% dos eleitores pró-Hitler eram católicos, ou seja, 83% eram protestantes orgulhosos. Veja o mapa do censo da eleição e da religião na época:

O mapa dos eleitores pró-nazismo (esquerda) foi praticamente o inverso do mapa católico (direita)

Como se pode ver, o pacote da Prússia tinha vários valores e atitudes que não combinavam com o Evangelho. Não buscavam a paz, entraram em várias guerras para se expandir, tinham um discurso e atitudes violentas. E ao associar a fé com o nacionalismo, com o seu programa político, a Prússia jogou o protestantismo no meio da maior tragédia do século XX. Claro que houve exceções e grandes figuras evangélicas (e católicas) resistiram e até foram presos (e mortos) pelo regime nazista. Mas a participação protestante durante as eleições foi muito relevante. Nao atentaram para o resto dos "produtos na cesta básica prussiana".

Mas infelizmente não é apenas na Prússia nacionalista e moralista do séc 19 que o problema apareceu. Essa confusão entre agenda política e Reino não tem lado político.

Antes de tudo deve se ter cuidado ao falar em definição de "esquerda" ou "direita" - se estamos falando de esquerda como apoio ao necessitado, suporte do Estado em políticas sociais, repúdio ao racismo e outras discriminações - ou se estamos falando de esquerda enquanto costumes progressistas ou revolução armada contra o governo. Sao aspectos diferentes que podem ou não dialogar com o Evangelho.

Um exemplo é a Teologia da Libertação (TL), que tem uma justa e necessária ênfase na assistência social e defesa dos mais fracos, da justiça social. Afinal, a própria Bíblia defende que "a verdadeira religião pura e imaculada pra com Deus é esta: visitar os órfãos e as viúvas na hora da necessidade, do apuro, e guardar-se dos costumes do mundo" Tg 1:27.

Mas a TL teologicamente acaba por ser um recorte pobre do Evangelho e frequentemente se associa aqui e ali, com grupos e bandeiras que historicamente nada têm a ver com o resto da agenda do Reino e valores morais bíblicos. O único ponto em comum com estes movimentos é a obra social, mas por causa de "um produto na cesta" a TL acaba com isso se abrindo e se diluindo com outras cosmovisões fora da Bíblia - acaba comendo os demais produtos, e produzindo teologias "temáticas", submetendo a interpretação da Bíblia aos olhos das bandeiras e movimentos sociais, ao invés de interpretar as conclusões sociológicas a partir da Bíblia.

Também é desnecessário citar que muitos destes movimentos sociais pouco criticam (isso quando não apoiam abertamente) governos totalitários e regimes sem liberdade. Ditadores, terroristas, figuras que não tem conexão com o caráter de Jesus - sendo muitas vezes os primeiros a perseguir os cristãos nos seus regimes.

Para o pensamento revolucionário, é absolutamente válido o uso de revoluções, insurreições, desobediência, e violência para atingir seus objetivos. Paredão de fuzilamento, campos de trabalho forçado, delação dentro da própria família, guerrilhas, insubordinação e revolta popular, revolta contra o governo vigente. Também é muito comum a incitação ao rancor contra grupos: a classe burguesa, o patronato, o patriarcado ou qualquer outra fatia que se interprete como acumuladora de poder - a ponto de se empobrecer o lidar com o outro, tratando-o com barbárie, justificando qualquer violência, por ordem do movimento, da bandeira, do partido - nada menos do que uma "retribuição do oprimido". Nada disso tem lugar no Reino, mas encontra-se na História de várias tomadas de poder "em nome do povo" e na formação das "repúblicas democráticas/populares" pelo mundo.

Também é óbvio que a pauta progressista dos costumes também está em rota de colisão com muitos posicionamentos bíblicos. Muitos movimentos progressistas são abertamente contrários e ácidos ao evangelho e os cristãos - pois consideram a pauta de costumes cristã um dos pilares da super-estrutura que atrapalha a revolução e despertar das classes sociais. Outras vezes consideram a família bíblica um núcleo perpetuador de opressão.

Porém uma discussão mais ampla sobre a compatibilidade com o que se entende por esquerda vai ser publicada aqui, mas pra não alongar, ficamos com o acima falado.

Porém o mais preocupante não está no lado progressista, e sim no lado ideológico cuja pauta de costumes diz ser bíblica - ou pelo menos não é abertamente contrária. O perigo está no que é parecido, naquilo que é supostamente compatível. Eu não preciso alertar você, enquanto dirige, de não bater o carro no elefante colorido no meio da rua. Você vê o grotesco, aquilo que é "gritante".

O urgente é falar do sutil, do buraco na estrada de noite, que parece ser parte do asfalto mas não é - e ao passar a toda velocidade, pode quebrar sua roda e bater o carro.

Lembre-se: ser (supostamente) compatível não é ser igual ou equivalente, de igual importância. Ter pontos em comum não é ser idêntico ou equivalente. E mesmo essa coisa de "ser compatível" ou os tais "pontos em comum" precisam ser confirmados!


O modelo e o movimento

Veja, que nem mesmo os diferentes modelos de igreja dentro da mesma linha teológica, nem as várias estratégias de implantação de igreja conseguem ser representações plenas do Reino, como se fossem sinônimos - muitas vezes elas acabam ecoando problemas e defeitos bem humanos - sendo o ego ou a vaidade um exemplo - pois por mais bem intencionadas que sejam, as modelagens são humanas.

Nem mesmo teologicamente a gente consegue envolver e sistematizar todos os aspectos lógicos e práticos do Reino de maneira unificada - temos diversas formas de organização como presbiterianos, batistas, congregacionais, pentecostais clássicos, etc. E todos se veem como buscadores legítimos da implantação desse Reino.

Porque raios um modelo político ou ideológico, um partido ou um movimento social seria capaz de bater no peito e se dizer representante desse Reino, de englobar ele dentro de sua agenda ou bandeira?

Se nem mesmo as igrejas - cuja missão e prática teoricamente brota diretamente do esforço de interpretação das Escrituras - conseguem estar livres de misturar os objetivos de Deus com os objetivos pessoais/humanos, como podemos aceitar misturar ou igualar projeto político-partidário com Reino de Deus?

Isso porque o Reino não é um edifício de dogmas e teologias sistemáticas perfeitamente encaixadas. Nao é sobre a pintura, é sobre o processo de pintar e ser usado para pintar. Nao é sobre a correta crença, é sobre a correta crença em movimento, fazendo esse Reino e seus frutos brotarem num mundo árido, injusto e pervertido, que não precisa de ajuda pra se estragar e transformar tudo em fonte de morte. Crer até mesmo os demônios crêem - Tiago 2:9.

A água corrente é vida, leva nutrientes, move os engenhos, rodas d'água e assim produz trabalho, transformação. O Reino enquanto "escultura perfeita" e estática não é Reino, é tao útil ao faminto como o retrato de uma feijoada ou um prato com foto de comida.

O prato é medicamente correto, instrutivo, mas não mata a fome

O reino de Deus brota como resultado de uma igreja que entende que é a Roda D'água de Deus na Terra - seguindo o mesmo ciclo que vemos tantas vezes nas vidas transformadas na Bíblia: consciência, arrependimento, mordomia, santidade, testemunho, envolvimento. No fim dessa sequência, mais pessoas são tocadas em sua consciência e maior fica o Reino, mais frutos ele passa a gerar no seu derredor.


Eu recomendo você por curiosidade ver esse vídeo abaixo. Mostra o moer da erva mate para quem curte um tererê ou chimarrão. A erva é moída por vários pilões que são erguidos pelo movimento que a roda d'água recebe do rio do lado de fora. Eu fui pessoalmente visitar esse lugar em Bento Gonçalves-RS. Na história da Humanidade isso também serviu para moer cereais, bombear água para terrenos altos, etc.


Por isso, não podemos aceitar que outra coisa além das Escrituras, outro alguém além de Cristo ali mostrado, sejam nossos exemplos. Aquilo que o meu líder ou político preferido diz, o que a bandeira do movimento professa, o exemplo (bom ou mau) que ele dá, tudo isso não pode me levar com a mesma força que os valores e princípios do caráter e prática de Jesus.

Pra nós, não pode haver outra profissão de fé que não seja em Cristo. Nada nem ninguém outro pode causar em nós um gasto de tempo e energia que não seja na direção do Reino e em nos tornarmos a cada dia mais parecidos com Jesus. Nada pode nos mover na direção do outro humano que não seja como vendo nele o meu próximo, tendo eu como o primeiro contato com Jesus que ele vai ter - e isso depende do quão "Jesus" eu tenho sido.

Se eu sou capaz de ir atrás do outro pra provocar, brigar, gastar emocional e psicológico, tempo, dinheiro, entao eu já estou fora do foco como embaixador desse Reino.

Se eu gastarei tempo, energia, VIDA, vai ser em nome do Reino - e de mais nada.

Botando o irmão no pacote




A "cestificação" é uma simplificação, que afeta inclusive nossa comunhão e testemunho.

Somos levados a encarar o outro, o que aderiu ao pacote diferente do nosso, não mais pela ótica do Reino - como irmãos de caminhada crista ou que precisam conhecer a Cristo, não como meu próximo, como Jesus explica - mas como inimigo, como alguém que eu preciso derrubar, calar, contradizer com toda força, pois é uma ameaça ao meu pacote/bandeira.

Já automaticamente rotulamos a pessoa com todos os adjetivos e xingamentos que "esse tipo de gente" merece. Nao importa quem ela é ou foi na nossa vida, ou se acabamos de conhecer. Se é apoiador do outro lado, automaticamente é coberto com o manto da rivalidade, escondendo toda a sua identidade única, sua história de vida, e até mesmo suas limitações pessoais. A fusão de cidadania do Reino com a cesta política literalmente coloca "todos numa mesma cesta" e nos leva a ver o outro como "tudo farinha do mesmo saco".

A "pacotização" (ou "cestificação", chame como quiser) desumaniza o outro, poe nele um rosto genérico e o chama de adversário, de inimigo, um símbolo, um ser abstrato que ameaça minha posição ideológica. E é fácil odiar símbolos e coisas abstratas.

Faz do próximo um ser sem nome, sem história, sem necessidades que eu como cristão posso suprir, e sem dons e talentos que Deus possa usar para me curar e edificar.

Agora é um alvo vivo para eu descarregar toda a minha "munição", todas as explicações prontas, as frases de efeito, gritos de protesto e as notícias salvas no meu celular.

Nao é mais o Fulano/Fulana


Com certeza essa é uma lente que nada tem a ver com o Reino de Deus, onde o relacionamento com Jesus tem uma dimensão pessoal, o milagre é pessoal, e a dimensão coletiva é curar e sermos curados, edificar uns aos outros. 

Em Gálatas 3, nos é dito que no Reino não há mais grego ou judeu, rico ou pobre, escravo ou livre. Essa divisão, essas "cestas" criadas pelo ser humano não são mais parte da lente do cristão. Então porque é que deveríamos tolerar ou mesmo incentivar que retornem?

Ou será que nosso comportamento por causa da política tem trazido "inimizades, brigas, acessos de raiva" (Gl 5:20)?

O único alvo que o próximo pode ser no Reino, é alvo das nossas intercessões, amor e pregação, alvo do nosso exemplo, testemunho, e atenção.

O que aprendemos da História

Essa fusão entre Reino e política, esse sequestro da fé para usos políticos - ou a busca da política como forma de se proteger e ganhar força é perigoso.

Faz com que o homem e a mulher cristãos comecem a considerar que o sucesso político de um grupo signifique o sucesso da parte espiritual - como na Prússia, é "natural que a gente escolha esse lado" ou "todo cristão tem que apoiar essa bandeira/partido". E isso muitas vezes levou cristãos a adotarem/buscarem partidos, candidatos e bandeiras que alardeavam serem defensores do Reino ou de terem no seu governo, objetivos "cristãos".

Tiveram que aceitar a cesta completa por causa da promessa de ter um produto específico dentro.

Mas veja - basta 3 mL de vacina para proteger, ou 3 mL de veneno para tornar um balde de água em algo refrescante mas mortal.


Veja algumas consequências dessa confusão/fusão de lado político com religião:

1) permitir-se polarizar e radicalizar a ponto de negar a própria prática cristã em nome do pacote que compraram - são capazes de brigar, atacar, magoar e isolar o próximo (mesmo dentro da igreja!) em nome do lado político que escolheram. Se tornam diabos na vida dos outros, quando deviam ser benção e refrigério.

2) tolerar ou incentivar práticas de mesma raiz pecaminosa (p.ex. violenta, mentirosa, inflamatória, questionável) desde que para "defender o nosso lado". Nessa hora eu lembro de Jesus perguntando aos discípulos violentos "de que espírito vocês são?" (
Lucas 9:55)

3) acreditar que um lado ou viés ideológico humano seja capaz de representar o Reino e seus valores, misturando escatologia espiritual com utopia política: quando a agenda política estiver 100% implementada, o Reino estará implantado e o mal, vencido e de mãos atadas.

4) Adotar um(a) ungido(a) dessa agenda, que deve ser defendido(a) a qualquer custo. Quando ele tiver 100% de poder, ele poderá finalmente fazer o que estava "predestinado" a fazer por nossa causa. Se el vai preso, é um mártir. Se resiste, é um herói. Se é investigado, é perseguição do mal - e não uma averiguação em prol da transparência. E se visivelmente erra, foi por amar demais a causa e defender o bem.

5) Quando o item 3 e 4 acontecem, toda igreja local se torna uma suposta fonte de implantação e pregação do "reino" - neste caso um conceito maculado de Reino - um reino implantável por esforço e intelecto humano e na força da ideologia e não do Espírito.

6) Dizem que compraram o pacote por estarem preocupados com os valores do Reino mas sequer os cultivam diariamente em seu lar e vida privada. Diz defender a família, mas dentro de casa a dinâmica já se deteriorou bem longe da práxis da Palavra e há abundância de pecado e suas conseqüências, de desrespeito, agressividade, chantagem, abuso, vergonha, vícios, etc. É como um homem que reclama que não tem chovido mas bem horta ele tem, apenas terra rachada. Pode-se dizer que muitos que gritam e compram "pacotes políticos" em defesa da família cristã não tem "lugar de fala" pois tampouco passariam no crivo da Palavra.

7) Como o conceito de Reino e de messias estão corrompidos, a crítica ou divergência política vira uma divergência teológica velada - afinal pra eles a realização do político implica no sucesso do espiritual. E os candidatos e seres políticos sabem bem como fazer o espiritual ser (nominalmente) parte da campanha, misturando e contaminando conceitos.

8) por causa do item 1, 2 e 4, está disposto a por em risco a comunhão, a convivência pacífica do Corpo, a brigar ou mudar seu jeito de ver ou viver com outro irmão por causa de política. Ou seja, rasgam a cidadania do Reino por causa da cidadania terrena!

9) até a teologia acaba por ser alterada, revista, para dar suporte "bíblico" a agenda política.

Pode ver que os itens acima se aplicam à qualquer lado político - da esquerda à direita, está todo mundo errado na maneira de lidar com essa fusão perigosa.

Aprendendo com os erros

Aqui neste texto eu não estou olhando para lado A ou B, esquerda, direita ou centro. Eu estou analisando o que a falsa equivalência entre fé e agenda política fizeram e quais frutos produziram. É você que tem de analisar a cesta e escolher nas urnas.

Seja na direita ou na esquerda, de Mises a Marx, existe um alvo errado - a ação, as justificativas e a esperança estão todas apontando para a plena realização da cartilha, da bandeira, do movimento. A escatologia é política e não mais do Reino.

Temos que resistir a tentação de antecipar o Reino na Terra através de atalhos humanos. O Diabo fez isso com Jesus no deserto. Sem precisar passar pela ansiedade do Getsemani, nem a dor da Cruz, nem a breve separação entre ele e o Pai para pagar nossos pecados. Bastava se dobrar ao diabo e seu pacote.
O poder absoluto sobre os reinos - algo que Jesus tem por direito na sua volta - estava a um ajoelhar de acontecer.
O assombro e adoração de todos os povos estava ali, no convite do diabo para Jesus dar um show público se jogando do alto do templo, para os anjos criarem um espetáculo de salvamento.




Bastava seguir o "jeito do diabo" de usar o as coisas legítimas - comprar o pacote.

Se você parar pra refletir, esses pacotes humanos tem grande apelo pois não exigem uma mudança profunda em todas as áreas como faz o Evangelho. Normalmente apelam apara alguns valores morais, algumas tradições, e em outras áreas são relaxados ou omissos. Cobram alguns posicionamentos e exigem pública profissão de fé - no partido, no(a) candidato(a).

Por exemplo, defendem o casamento no formato bíblico, mas não seguem a cartilha toda - como amar a esposa tao profundamente como Cristo amou a igreja, a ponto de dar a vida por ela, protege-la, desenvolve-la, ter intimidade como um só corpo e propósito. Daí acontecem aberrações como pastores com amantes e violentos com o cônjuge, mas gritando na Marcha para Jesus. Gente de igreja aparecendo em investigações por mau uso de cargos públicos. Mas pra eles a verdadeira ameaça ao santo matrimonio é "o mundo".

Nós deixamos que nossa visão política ou ideológica se torne pra gente, algo salvífico, e lutar por isso se torna uma batalha apocalíptica - para implantar nossa ideologia e trazer o Céu, e pra evitar que a ideologia oposta traga o inferno.

Nao é mais o bom combate. É uma guerra externa, que nos distrai do nosso maior inimigo - o pecado, pronto na nossa carne pra brotar. E ironicamente, essa guerra externa aflora e provoca o pior latente de nós.

Aquilo que está previsto na Bíblia - a igreja sendo perseguida século após século por não aderir aos costumes do mundo - vai acontecer. Aliás só vai acontecer se a igreja fizer o que o Senhor da Igreja nos pede, se buscarmos santidade, mordomia e honrar a Deus na vida privada e pública. Trazendo luz, paz, frutos do Espírito a toda a sociedade, sem abrir mão dos nossos princípios bíblicos. A Igreja não vai trazer o Reino ao mundo por meios humanos, e sim pelo testemunho, pela pregação e exemplo nos relacionamentos diários!

Temos de olhar bem de perto, e ver as incoerências nos pacotes, nas ideologias, como discursos violentos, "ódio do bem", complôs, desvios de verba, ameaças, associações com criminosos ou lobbies anti-éticos (ou mesmo ilegais) com empresas.

Mas atenção em quem você apoia abertamente: o mau testemunho de alguém público que se declara cristão é mais prejudicial à igreja do que a perseguição de um ímpio - pois deste ninguém espera nada realmente diferente "do mundo".

Textos de referência: Mt 26:47-54; Mt 26:3,14-16; Mt 27:20; Mt 28:11-14; Mc 14:65; Lc 4:28,29; Lc 23:1-5; Lc 24:19-21; Gl 3:28;

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

A Bíblia e Dom Casmurro


Uma vez me disseram que Dom Casmurro era um livro insuportável, e que em breve quando eu chegasse no colegial (o ensino médio) chegaria a minha vez.

O dia chegou, a professora  - a Dona Vanir - passou a lista do que cairia na "prova do livro" e nesse momento finalmente me vi na "milha verde"[1]. Depois de pegar o tomo na biblioteca, senti que a escola me fazia ser o meu próprio carrasco e levar meu Machado pra casa para me golpear pra passar em Português [2].

E aí começou a leitura. Algumas páginas depois, eu entendi porque esse sujeito do bigode se tornou imortal e pedido nas escolas 90 anos depois de morto. Uma leitura densa, personagens sólidos e aquela dúvida se amamos ou odiamos Capitu, se nos solidarizamos ou nos revoltamos com Bentinho. 

Eu amei o livro. Não consegui mais ler outros livros do mesmo jeito. Parecia que eu havia experimentado uma comida maravilhosa e agora iria comparar tudo que comesse a essa comida. Meu padrão de exigência se elevou para ler e também para escrever. E não temos muitos Machados de Assis na História. Mas ainda bem que Graciliano Ramos trouxe Vidas Secas (e meu conto preferido, A Hora e a Vez de Augusto Matraga).

Esta capa com a cadela Baleia é demais

O que aconteceu na verdade foi que eu não conhecia o Dom Casmurro. Eu tinha um conhecimento genérico, popular. Eu sabia o que falavam dele. Eu sabia o que diziam que era e do que se dizia se tratar. E isso não apenas me afastava da incrível experiência de conhecer os "olhos de ressaca" de Capitu, como era uma injustiça com o Machado.

A segunda grande mudança que passei foi em 2020 durante a 1a onda da pandemia, em que a empresa nos pediu para trabalhar de casa. Em Abril de 2020, aceitei o desafio do Pr Isaías de Goes num culto online sobre ter um momento a sós com Deus todo dia, e passei a olhar pro outro livro que me acompanhava de perto num caso quase platônico - a Bíblia.

Resolvi ler o que eu pudesse por dia, todo dia pela manha antes de trabalhar. Não ter que dirigir me dava 30 minutos a mais todo dia. A leitura começou como tinha que começar: Gênesis 1. Do lado um caderno para anotações, e uns lápis para marcar o texto ou anotar.

Dezembro de 2020 terminei Apocalipse. E então percebi algumas coisas que compartilho abaixo:

1) A Bíblia era meu Dom Casmurro espiritual.

Em 22 anos de conversão desde o batismo e profissão de fé eu nunca tinha lido ela como um todo, como uma história contínua.

Eu havia lido trechos dispersos e espalhados aqui e ali, selecionados durante uma pregação ou uma aula na Escola Dominical. Como se a Bíblia fosse um álbum de fotos cheios de recortes de jornal ou notícias fixadas nas páginas. 

Claro que eu saia que as coisas faziam parte do mesmo todo. Mas os versículos andavam na minha cabeça sempre em bando, com camisetas temáticas do tipo "salvação", "dízimo", "pecado", etc. Eu conhecia a escalação todos esses times e seus jogadores, mas não via nenhum campeonato na minha vida.

Após ler por inteira a Bíblia, as camisetas ficaram apagadas. Elas viraram uma torcida organizada única. Eu percebi que quando me perguntavam (ou eu me questionava) sobre algo, meu cérebro não buscava o que eu havia lido da Bíblia, mas o que me disseram que ela falava.

Em 22 anos de "crente" eu nunca havia lido a Bíblia como um indivíduo. Eu percebo hoje que eu "lia" os textos a partir de Lutero, a partir de Calvino, a partir da pregação do pastor X ou Y. 

Assim como fizeram com Dom Casmurro, eu apenas repassava o que ouvia sendo pregado, o que escolásticos haviam interpretado, mas não o que eu havia entendido.

Eu sabia explicar a partir dos esquemas e ligações propostos pelos nomes famosos da Reforma, repetindo a formulinha de versículos específicos combinados. Mas não a partir da minha própria vida - muito menos da minha prática diária.


2) uns 80% do conteúdo estão muito evidentes e não requerem muita explicação

Mas só com esses 80% já tem um caminhão de coisas pra resolver, melhorar e repensar sua vida e sua rotina. Os demais 20% não são descartáveis, mas dá muito bem para ir aprendendo e se aprofundando aos poucos com o tempo. 

A imensa maioria dos nossos problemas como igreja e como cristãos está no relaxo com esses 80% auto-explicativos, que não dependem de pastor nem de teologia para aplicar no seu dia-a-dia.

3) desses 20% restantes, uns 5% são passagens que nem os teólogos se entendem, mas não são decisivos

São trechos debatidos há séculos e não encontram uma explicação única e suficiente. Mas em nada interferem no "core", no coração da sua vida íntima com Deus (que estão nos 80% citados). 

4) Os grandes nomes intocáveis da Reforma como Lutero e Calvino, bem como vários Papas e teólogos famosos fizeram coisas absurdas e incoerentes com os 80% citados acima. 

Não adianta dizer que eram "homens do seu tempo" porque o padrão esperado por Jesus nesses 80% são atemporais, valiam para os apóstolos e valem pra mim hoje. Esses caras tinham acesso aos textos bíblicos no original em grego, latim, hebraico, e sabiam interpretá-los sem traduzir. Mais desculpáveis eram os plebeus que não sabiam ler e dependiam do clero "explicar" o que supostamente a Bíblia dizia. Assim como todo humano pecador, eles tiveram grandes "insights", grandes sacadas e algumas pregações brilhantes. Mas não devem ser reverenciados ou seus textos levados em pé de igualdade com a Bíblia.

Não o se justificam por nenhum texto bíblico as Cruzadas, a Inquisição, a Contra-Inquisição, a Guerra dos 30 anos na Alemanha, entre católicos e protestantes, o terror do Consistório de Calvino em Genebra (com as torturas de Jacques Gruet e Miguel Servetus, pra citar apenas 2), ou a escravidão nas Américas. Isso é mau-caratismo disfarçado com verniz religioso. O mesmo vale para a igreja ao se associar a ditaduras ou levantes revolucionários.

5) Muitas categorias ou tópicos indiscutíveis ficaram muito menos "óbvios" no tocante a grandes temas da teologia, muito mais borrados e muito diminuídos quando falamos de prática. Em outras palavras - seja por "aceitar Jesus" ou "ter sido convencido a aceitar por ser eleito", a ordem e a prioridade escrita continua a mesma: mudar de vida, re-significar as coisas, re-educar seus relacionamentos e imitar a Cristo, tornando a vida sua e das pessoas ao redor mais saudável, mais agradável a Deus, e passando isso adiante. 

O que passar disso é "discutir sexo dos anjos", é discutir ao lado da maca se o paciente está morrendo de infecção ou infarto - sem salva-lo. É gastar neurônios e tempo com mecanismos celestiais que não temos acesso direto. O que temos são ordens e exemplos diretos de Jesus. A Bíblia é a Palavra revelada, é a revelação suficiente para mudarmos de vida e conhecermos a Deus.

O que se vê hoje em dia é como alguém que tendo um livro de receitas, não faz um bolo sequer mas tenta extrair como os ingredientes se harmonizam ou quantas calorias o bolo terá. Mas bolo que é bom, não sai, não nutre, não acontece.A bíblia como desodorante, debaixo do braço até a igreja e volta. Pode estar perto do coração mas pra passar do sovaco pra dentro, é só lendo e aplicando mesmo.

Em 22 anos tudo ficou anestesiado na mesma. Porque? Porque há essa lenda de que a Bíblia é complicada, longa, e só gente "estudada" em teologia sistemática consegue juntar as peças. 

Desconfio que parte disso se deve a alguns fatores que acabam por causar uma fragmentação do conteúdo em pedaços na nossa cabeça:

  • A terceirização do estudo bíblico, que a igreja normalmente relega ao pastor e aos professores da escola dominical (isso quando existe uma). É ele que tem de ensinar, não eu que preciso ler ou buscar saber. E os pastores acabam se dividindo em 2 tipos: os que se viciam em ser a figura central, e os sobrecarregados que gostariam de ter uma comunidade mais madura e sedenta de Bíblia, mas tem que ficar apagando incêndio de membros que só se alimentam da Palavra através da pregação dominical.

  • A milenar tratativa do Reino de Deus através de temas separados como "salvação", "eleição", "pecado", "fé", a partir de um sistema específico (calvinismo, por exemplo) sem estimular primeiro a leitura do "manual" (a Bíblia) por completo.

  • A tradição de fazermos pregações expositivas em cima de um trecho (uma perícope), nem sempre sequenciais. Um domingo se lê um trechinho de Lucas 4 e no outro João 8, depois Levítico e assim por diante. Ou ainda sequencias "temáticas" de 4 domingos em que recortamos a Bíblia a partir de um assunto, pinçando os versículos que corroboram com o tema.

  • A desconexão mental que persiste, entre vida religiosa e vida secular - como se a existência da Bíblia fosse apenas para dar a nós um conteúdo para ouvirmos e celebrarmos todo domingo, mas não se conectasse ao nosso dia-a-dia nem exigisse obediência fora do culto.
Eu não estou querendo dizer que teologia é perda de tempo, ou que é inútil estudar mais a fundo, ter uma boa hermenêutica e exegese, buscar as camadas do texto com contexto histórico, costumes, geografia, etc. Isso enriquece o texto e o aviva. Os pastores devem se valer disso tudo para avivar e abrilhantar o texto à luz de uma comunidade que precisa andar por si, como um pai que ensina a nadar, não para ser um constante salva-vidas ou apoio para o filho ir na parte mais funda da piscina.

Minha revolta, meu incômodo após minha experiência de leitura completa, é que a maioria das igrejas tem sua vida espiritual prática raquítica, atrofiada. Discutem-se as receitas mas o bolo não sai. Cumpre-se a liturgia, canta-se, lê-se o texto, mas as pessoas deste domingo continuam iguais ao que eram no domingo passado.

É necessário um discipulado sério em que uma curva de intimidade com Cristo cresça (ainda que com altos e baixos, mas sempre pra cima), que o exemplo Dele seja seguido, dando aos 80% importantes pelo menos 80% do nosso esforço em comunidade.

A igreja sofre com uma crise de práxis (botar em prática em si mesmo e ao redor). Nada chama mais a atenção do que uma vida transformada de verdade. Sem isso, vemos o que temos visto: estratégias de marketing, de branding (às vezes até de Coaching), com camisetas, logotipos, movimentos e ministérios que precisam crescer sem alimento. O melhor banner de propaganda do evangelho são cartas vivas. 

Deixo vocês com o pensamento de Joseph Campbell, estudioso de mitologia e estruturas narrativas, no seu livro "O Poder do Mito" (que explica como contos como Star Wars e Harry Potter se tornam imortais e nos cativam):

Pregadores se equivocam, quando tentam persuadir pessoas à aderir a fé ; fariam melhor se revelassem ao mundo a radiância, o entusiasmo de sua própria descoberta


Notas:
[1] referência ao filme "À Espera de um Milagre" de 1999 com Tom Hanks
[2] não pude me conter com o trocadilho