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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

A Farra do Bezerro

A FARRA DO BEZERRO

Em algumas comunidades do Brasil, ainda é infelizmente praticada uma espécie de tourada maltratando até a exaustão um boi, que no final acaba por ser sacrificado. Essa prática é crime, e é chamada de Farra do Boi e apenas evidencia a violência do pecado humano.


Bem distante no tempo, mas não no conceito, começou há milhares de anos a farra do bezerro. E ela também maltrata a igreja à exaustão. Vamos revisar Êxodo, capítulo 32.

Após 40 dias aguardando Moisés voltar do alto do monte, onde ele estava recebendo os mandamentos de Deus, o povo hebreu ficou impaciente. Pressionaram então Arão, irmão de Moisés e escolhido como sacerdote por Deus. O povo pediu a Arão que fizesse para eles deuses, ídolos que continuassem o percurso pelo deserto, assim como o Senhor havia feito desde que saíram do Egito. Moisés não voltava, novas ordens não estavam sendo dadas, e eles queriam avançar.

Arão então pede os brincos e adornos de ouro do povo, derrete e forma um bezerro de ouro, dizendo "eis os nossos deuses, que nos tiraram do Egito. Amanhã vamos ter uma festa em honra ao Senhor". Trouxeram animais, fizeram sacrifícios e comeram e beberam aos pés do ídolo de ouro, do bezerro.


Pelo verso 5 de Êxodo 32, é possível entender que Arão achava mesmo que o que ele havia forjado em ouro não era um deus pagão, mas uma estátua que representava o Senhor e assim poderia ser levado adiante, adorado e consultado.

Josué aparentemente tinha ficado no começo da subida do monte, esperando Moisés, e ao encontra-lo pergunta assustado "ouço um barulho de guerra no acampamento do povo".




Moisés já havia sido avisado por Deus sobre o que estava acontecendo, e corrige Josué: não é barulho de guerra, nem festa de vitória de guerra nem lamento de derrota de guerra, mas de festa, de gente cantando.

O que podemos aprender desse texto?

Um deus pra chamar de eu




Mas porque eles queriam que Arão fizesse o tal ídolo? Porque Moisés estava demorando, e eles queriam sair dali mas precisavam se sentir confiantes com alguma divindade indo na frente. Eles queriam um deus que os atendesse no tempo deles. Um deus que eles mesmos pudessem levar adiante nos seus propósitos, e fosse consultado quando quisessem. Eles não adoravam o Senhor pelo que Ele era, mas pelo que Ele estava servindo: para avançar pelo deserto pra terra prometida. Se "esse tal Deus não está mais fazendo isso, a gente troca de divindade, tanto faz que deus é, queremos adorar algo que nos tire do deserto". Eles não queriam esperar as orientações e os planos de Deus, eles queriam um deus que atendesse suas metas (no caso, sair do deserto para Canaã). Eles não queriam uma divindade, no fundo eles queriam seguir a si mesmos.

Seguindo adiante, Arão tenta apaziguar a sede enganosa do povo com uma solução meio-termo: nem a Palavra do Deus verdadeiro, nem um ídolo pagão declarado. Ele tentou criar  algo que saciaria o povo, podendo ser carregado adiante, mas que supostamente representaria Deus o Senhor suficientemente (pelo menos ele achava que era suficiente). Como se Arão dissesse : "estou fazendo uma estátua pra adorarem, mas é de Javé o Senhor, não é idolatria a outros deuses!".

Ele monta a sua versão caseira de "Javé", acreditando que fosse possível dar louvor e sacrifícios a esse bezerro, a essa representação, e isso chegar até o Senhor. Tanto é que ele organiza uma festa a Deus no dia seguinte usando esse bezerro como figura. Matam touros, comem e bebem aos pés dele.
Porém vemos por esse texto de Êx 32, que uma representação do Senhor ainda não passará de uma idolatria, um novo deus, pois o mesmo parecendo prático, o motivo é atender nossos objetivos pessoais.

Arão não era como o povo simplório - que apesar de tudo havia visto as 10 pragas, atravessado o mar vermelho a pé e comido maná. Arão tinha sido escolhido por Deus como sacerdote e recebido ao lado de Moisés muitos sinais e ordens de Deus. Mas entre perder o controle do povão e fazer o que era certo, Arão preferiu acalmar e manter o povo satisfeito.

E o resultado vemos na fala de Josué com Moisés: parece guerra, avivamento, mas é apenas o povo celebrando a si mesmo, dizendo que é para Deus. Parece adoração a Deus (dizem que é), mas o objeto de adoração é feito literalmente com as suas vaidades somadas (os brincos de ouro, as joias, derretidas), disfarçadas de "Senhor", mas feito para atender as vontades e urgências deles, e não eles para com a divindade.

Quantas comunidades com placas de igreja, liturgia de igreja, linguajar de igreja, padecem do mesmo mal?

Quantas assembleias, presbitérios, conselhos, comunidades, denominações, líderes, têm oferecido o "meio-termo de Arão", aquilo que é dito ser Javé, Deus de Israel, ou Jesus o Filho, mas que é representado da maneira que o povo anseia, formatado pra atender o que o povo, pra ser carregado por cada um na direção dos seus próprios planos humanos e metas?

Uma teologia para consumo, um culto que te chama para vitória e conquista, ou para o absoluto relaxamento, respeitando as tuas prioridades e planos? O meio-termo de Arão vende, mantém a comunidade frequentando, arrecadando, justificando a existência da estrutura eclesiástica (corpo pastoral, liderança, templo, rotina). Afinal, como muitos pastores já se justificaram dizendo "se a comunidade fizer metade do que pedimos já vai ser um avanço". É a teologia do conforto, para ambas as partes.

É fácil condenarmos igrejas que vendem "sabonete com cheiro de Jesus", ou "vassoura ungida" e outras bizarrices. Porém por serem heresias tão grotescas, deixamos de perceber as armadilhas sutis, no alto da nossa "iluminação reformada". E como diz o ditado, o diabo está nos detalhes. E o meio-termo de Arão é sutil e venenoso.

Cuidado com o seu ouro



O meio-termo de Arão precisa de bezerros de ouro pra existir. Assim como em Êxodo, são feitos também com o "ouro" de cada um da igreja. Com o "ouro" do talento musical, ouro da oratória, ouro do carisma, ouro do marketing - sim, marketing, com toda aplicação em marcas, slogans, forças-tarefa. Todo esse "ouro" (dons e recursos) é desviado de seu propósito - abençoar e enriquecer espiritualmente a comunidade local - para ser derretido em forma de ministérios, estruturas e formatos que sustentem o "meio-termo de Arão" moderno, e que possam trazer o "Javé meio-termo"  - o deus que poderia abrir o mar, mas quer te dar o carro do ano, e te tranquilizar cheio de amor barato, no meio dos pecados de estimação. O bezerro de ouro é polido todo domingo, toda reunião - a fim de sempre refletir nossa imagem nele, pra que haja identificação e conforto.




Diferentemente do que acontece em Êxodo 35 e 36, quando os israelitas usam seus ouros e habilidades para glorificar a Deus - na construção da Tenda - aqui em Êxodo 32 fica claro que a benção virou maldição através do pecado da idolatria ao bezerro.

A primeira lição a ser aprendida é: cuidado com o seu ouro. Cuidado para que ele não vire um bezerro ou seja somado a um. Cuidado com seu ouro, pois se o seu relacionamento não for com Deus pelo que Ele é, aguardando o que Ele planeja e deseja, seu ouro pode virar um belo e maligno bezerro, pra você carregar na direção dos seus próprios sonhos. E ainda mais diabólico: achando que está fazendo "a Obra", enquanto se doa com o foco errado.

O bezerro e o buraco negro


O bezerro é levado pelos israelitas pra direção que eles queriam. É o povo que leva seu deus, e não o Deus que leva seu povo. O meio-termo de Arão, na forma de bezerro, está aí na igreja de hoje. São tantos cultos que declaram vitória, declaram guerra, proclamam o "ano da colheita", o "ano da virada". São louvores que focam no "conquistarei, vencerei, voarei, dupla honra", ou no "restitui o meu direito", ou ainda "tu me livrarás, multiplicarás". É o povo cantando pra onde o seu bezerro deve os levar. E essa canção não encontra eco com Paulo, que em tudo dava gracas e sabia viver no pouco, no muito, doente ou sadio. Mas encontra eco com os profetas desviados de Jerusalém, do tempo de Jeremias, que diziam "tudo vai bem, vamos vencer os babilônios, não haverá cativeiro e sim vitória". É a romaria do bezerro, cantando pra onde ele tem que ir.

Os bezerros têm que ter muitas formas, conforme as muitas direções de cada ego. São forjados no formato de ministérios, logotipos, programações. São feitas campanhas, levantam recursos, mudam a roupagem do culto. Consomem o ouro (recursos, dons)  que ao invés de ser abençoador, vira pedra de tropeço, vira bezerro para ter o deus meio-termo pra eu inconscientemente me ver refletido e adorá-lo, sob a desculpa de ser para o Senhor Deus.

Há ministérios cujos líderes são temidos e temíveis, que como um buraco negro distorcem toda a igreja para que o orbite e alimente-o, atraindo o resto da igreja enquanto a consome de dentro pra fora. Consome tempo, consome o emocional de membros, recursos da tesouraria, distorce os vínculos sociais e acima de tudo - tira o foco da igreja da caminhada comunitária de santidade, reverência e simplicidade. Esses bezerros de ouro ministeriais são causa de brigas, mágoas, disputas e até mesmo apostasia. Já disse Jesus: ai de quem fizer tropeçar um destes pequeninos na fé. Mas quem tem olhos e vive para o bezerro, não enxerga mais nada ao redor.

Quer saber se é bezerro ou o Senhor? veja os frutos dentro e ao redor da comunidade da igreja. Os ministérios, programações e campanhas produzem frutos de santidade, de comunhão, abençoadores e discípulos? Gera gente mais comprometida com a Palavra, ou gente empolgada e depois machucada? Ou apenas frutos meio-termo, que apenas alimentam o bezerro de ouro?
  • Encham o templo é a versão meio-termo do "Facam discípulos"
  • Sejam ocupados, ao invés de sejam santos
  • Viver a semana toda na igreja, ao invés de ser sal e luz no mundo
  • Criem ministérios, ao invés de busquem o Reino de Deus
  • Ergam obras faraônicas, ao invés de edifiquem uns aos outros e os pobres
  • Sejam fofos e arrumadinhos, ao invés de assumam os pecados uns aos outros
  • Sejam impecáveis aos domingos, ao invés de fazer tudo diariamente para Deus
A idolatria é tímida, vem sempre disfarçada: de piedade, de comprometimento, de paixão pela Obra, mas assim como um ramo de laranjeira produz laranja, mesmo seja enxertada num limoeiro, a idolatria também nunca deixa de produzir seus frutos acima citados. 

Idolatria não é apenas relacionado com a vaidade, com orgulho, mas também com aquilo que é usado e valorizado de maneira desproporcional, seja para mais ou para menos. O abuso, ou separado em suas partes: AB-USO, o uso para além do esperado, planejado.

Pode ser idolatria da liturgia, do formato de culto, seja pelo novo ou pelo antigo. Idolatria do crescimento numérico, ou de arrecadação. Idolatria de líderes e liderados, do carisma pessoal. 


Até mesmo aquilo que um dia foi benção pode ser convertido em ídolo - veja o caso da Serpente de Bronze erguida no deserto (Nm 21:8). Séculos depois, algo que apontava indiretamente pra Jesus crucificado na Gólgota, estava sendo usado como deus e recebendo adoração como Neustã (2Re 18:4), sido destruído pelo rei Ezequias.



Nem todo barulho é música, nem todo movimento é vida

Pra quem observa de longe como Josué, ver toda essa movimentação na igreja local pode pensar que é guerra, clamor, avivamento! Mas é como diz Moisés, é só celebração para si mesmos, disfarçados de piedade, de devoção. Quando olhamos o alvo dessa devoção, não encontramos o Senhor, mas uma imitação feita de vaidades fundidas e que reflete a eles mesmos. Parece o barulho de quem está no meio do Bom Combate, mas é apenas a farra do bezerro, é a festa do meio-termo.

Portanto, fique atento ao seu ouro - aos ministérios, à vida da igreja em que você congrega, se ela vive para Cristo ou se alimenta o bezerro sem se dar conta. Veja os frutos, veja os efeitos nos irmãos e irmãs, nos líderes, e em você perante a Palavra. 




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