Páginas

quinta-feira, 18 de junho de 2020

O cristão e a violência


O cristão pode ter atitudes violentas?



Essa é uma pergunta que surge nos dias tumultuados que vivemos. Primeiro, se você não viu ainda, dê uma olhada no post sobre O cidadão Cristão no mundo.

Nós somos diariamente convocados para a violência pelo nosso entorno. A mídia, os filmes, os jornais, há uma glorificação constante da agressividade.

Há situações em que somos incitados a agir de forma violenta, seja por uma reação natural do nosso ser caído, ou por termos aprendido que é uma resposta válida e "natural". Porém a Bíblia nos ensina que aquilo que consideramos reação "natural" humana, é a maioria das vezes fonte de pecado e não uma fonte de virtude.

Do nosso post anterior podemos tirar algumas lições previamente conversadas: o cristão deve buscar estar em paz com todos, ser educado e respeitar as pessoas, sendo agradável e operar dentro da lei, respeitando as autoridades.

Obviamente esse perfil não comporta atitudes violentas e bárbaras, mas mesmo assim deixei esse aspecto para um estudo separado aqui. Lembrando que violência não é só física mas também verbal, é agressividade no ser. Tem casais que nunca encostaram a mão violentamente um no outro, mas se corroem e se envenenam com atitudes agressivas e falas ácidas. Estão matando um ao outro, enquanto matam a si mesmos por dentro.

Como exemplo, temos também pessoas "cristãs", espiritualizadas, tanto o "cidadão de bem" como o "desconstruído" se manifestando publicamente em redes sociais com posturas que pouco combinam com Jesus, embora ambas o utilizem para se justificarem.


Compilado de versículos

Nossos tempos são difíceis e faz tempo que os tempos são assim, desde Paulo:


No fim dos tempos haverá tempos difíceis - muitos serão egoístas, avarentos, orgulhosos, xingadores, ingratos, desobedientes, sem respeito pela religião, sem amor mútuo, duros, caluniadores, incapazes de se controlarem, violentos e inimigos do bem. Serão traidores, atrevidos e cheios de orgulho por isso. Vai haver até aqueles que parecem cristãos mas não são de verdade, mas usam disso para realizar seus desejos e ambições. Não devemos imitar esse tipo de gente, se formos cristãos.
Vamos fazer como no post sobre cidadania cristã, e compilar aquilo que é dito na bíblia, em especial no NT, Salmos, provérbios e eclesiastes. Todas as referências estarão aqui para você mesmo montar o quebra-cabeça verso a verso.

2 Tm 2:23-25; 2 Tm 3:1-5; Rm 12; Rm 13; Ef 5:22-32; Pv 27:4; Sl 59:6,14; 1 Ts 2:14; Sl 64:3-6; Pv 1:11-19; Pv 10:23; Sl 11:5; Sl 2:1-2; 1 Pe 2:11-18; 1 Pe 4:10:15; 1 Co 14:33; Pv 20:3; Pv 20:22; Pv 15:1; Pv 22:24-25, Pv 24:2, 11-12, 29; Pv 25:21; Pv 30:10, Pv 25:9, Pv 26:20; Pv 26:18-19; Sl 73; Sl 17:4; Sl 62:10; Sl 35 ; Sl 37; Jó 1:15


  • Ficar longe das discussões, pois acabam sempre em briga. O cristão não deve andar brigando, mas tratar a todos com educação, ser paciente, e corrigir com delicadeza aqueles que são contra ele, tratar com respeito o contraditório. Qualquer idiota pode começar uma briga, mas o sábio, o que teme a Deus é elogiado por se desviar e evitar as brigas.
  • Abandonar a prática de xingamentos, gritarias, insultos, acessos de raiva, inimizades, palavras destrutivas, de ódio mútuo.
  • Não nos vingarmos de ninguém, nem retribuir o mal com o mal. Paguem o mal com bem, deixando a violência e a vergonha toda do lado inimigo. A vingança e a retribuição dos maus é um direito de Deus o Senhor, não nossa. Não somos justos para nos fazer de flagelo de Deus.
  • Apesar de ser uma reação "natural" humana, não devemos cultivar a raiva, nem se deixar dominar por ela, ou deixar que ela produza através de nós pecado, para não dar chance ao Diabo nem entristecer o Espírito Santo que habita em nós. Pois a raiva humana não é capaz de produzir o que agrada a Deus, não é capaz de operar justiça de Deus. Pois o ódio é cruel e destruidor. Logo acessos de raiva não são capazes de construir.
  • Temos a honra de dar testemunho vivo e não podemos trazer desconfiança ao evangelho por mau comportamento. Se sofrermos, que seja por fazer o bem, e não por sermos assassinos, ladrões, criminosos ou se meter na vida dos outros.
  • Não devemos viver nas sombras, às escondidas, nossas ações são da luz e para serem vistas por todos à luz do dia. Nós assumimos o que falamos de cara limpa, mesmo que isso implique em perseguição política ou social por sermos cristãos. 
  • Portanto não devemos participar de ajuntamentos secretos, grupos que planejam atacar esse ou aquele, tramam armadilhas, planejam revoluções, assassinam reputações com difamações e calúnias. Grupos que saem pela cidade nos momentos vulneráveis, espumando e cercando, gritando xingamentos e ameaças, como cães raivosos, buscando o que devorar. Essas pessoas fazem isso achando que estão anônimas, que ninguém está vendo e que seus crimes serão impunes.

    • Esses grupos levam o terror, e o terror é próprio dos maus. E o Senhor abomina os maus, detesta aqueles que gostam da violência, o ódio brota daquilo que eles planejam. Eles semeiam a confusão e nosso Deus não é Deus de confusão e sim de paz. Os revoltosos estão sempre criando problemas, os que gostam de brigas, os que tramam revoluções, os que se cobrem e protegem com violência, confiam nela, porém a morte vai ativamente atrás dessas pessoas.

    • Um desses grupos ataca a fazenda de Jó, a mando do próprio diabo. Um grupo de pessoas assim vem para prender Jesus (Mt 26:47).
  • Devemos desviar a fúria, evitar as discussões e desviar das brigas usando palavras brandas, sabendo que antes que as coisas piorem, devemos parar logo quando começam os sinais, como uma pequena rachadura que prenuncia a barragem pronta a explodir e trazer morte e destruição.
  • Até mesmo brincadeiras estúpidas tipo 'pegadinhas', trotes e afins devem ser evitados, pois é brincar com o perigo e com o sentimento do seu próximo.
  • Devemos evitar andar com essas pessoas violentas, agressivas, grosseiras, para que não acabemos nos tornando como elas. Pois quando o sábio se permite ser violento, acaba se tornando idiota. Não devemos repetir as atitudes do violento.
  • Devemos entregar nossa causa ao Senhor, entregando a Ele a justiça, a vingança, sem se aborrecer, sem ficar com raiva ou furioso, mesmo em face de soberanos cruéis, violentos, opressores dos pobres. Aqueles que são fiéis a Deus, são generosos e buscam o bem, por isso não serão desamparados.


Nem só de proibições (não faça), mas também de obrigações (faça)

Ao mesmo tempo que somos chamados a desviar da violência, somos chamados para ativamente proteger o vulnerável, e salvá-lo das mãos do violento, da humilhação ou da opressão (Sl 24:11-12), sem poder fingir que eles não existem, e de que "não é problema nosso". Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus.

Aqui somos claramente chamados a salvarmos o vulnerável da agressão iminente, da humilhação em andamento, da morte certa dos violentos. Mas salvar o fraco não é agredir ativamente o violento. É conter a ação para livrar quem está sendo oprimido.
Existe uma diferença sólida entre conter uma pessoa violenta e ataca-la violentamente.

Somos chamados a uma defesa, para podermos escapar e sair da situação de violência, não para aumentar a situação de violência. Esse salvamento pode inclusive ser não-físico, como pagar a dívida daquele que seria morto, ou negociar com os recursos que Deus nos deu, para dissuadir o agressor, para desviar do violento.

Em nenhum momento somos convocados pela Palavra a batermos de frente com o violento, a imitar suas táticas e seus grupos. Devemos pacificar, desviar e até mesmo suportar. Fazer resistência é diferente de atacar. Não existe agressão preventiva no Reino de Deus, ou para seus cidadãos.

Mas e o Jesus violento ?


Principal cartaz dos dois lados políticos, vamos falar do "Jesus violento". Libertário, revolucionário.
Aquele que entrou no templo, e fazendo um chicote de cordas, atacou os cambistas, vendedores e animais de dentro do templo. Um momento que nos dá autorização de usar de violência, ignorando toda a compilação acima, se for "em prol de um bem maior, de uma causa justa". Será?

Para ter uma ideia ampla e mais completa do texto, precisamos antes olhar para outros trechos da bíblia e ver como Jesus lidou com a violência e com os poderes seculares em vigor - e não era qualquer um, era o Império Romano!



De Pedro e de louco...


Jesus na noite em que foi preso, é recebido com um bando armado, enviados pelo chefe da sinagoga (Mt 26:47). Os discípulos vem para reagir com igual violência (v. 50 e 51), e Pedro chega a cortar a orelha de um deles, mas Jesus repudia a atitude, pois 
Guarde a espada! Os que vivem pela espada [ou a empunham], morrerão pela espada. Ou você acha que eu não posso pedir ao meu Pai que me mande doze legiões de anjos imediatamente?E curou a orelha de Malco. (Mt 26:51, 52,53)
Há aqueles que dizem que essa atitude de repudiar uma resposta violenta é uma exceção, já que ele precisava passar pelo suplício, pela cruz, como é dito no verso seguinte (Mt 26:54). Como "se essa exceção fosse permitida apenas por fazer parte da Obra Salvífica, senão seria lícito eles revidarem".

Mas não é uma leitura correta. Há dois motivos pelos quais Jesus age como retratado nos momentos da prisão com Judas, e não é apenas para se permitir ir para a cruz.

1) Jesus não ratifica, não chancela os frutos da violência cometida. Ele se aproxima e restaura, cura, o que seus próprios discípulos haviam semeado com agressão.

2) ele manteve a sua atitude não-violenta pois precisava dar o exemplo para os discípulos ali e nós os discípulos que viriam. "Quando foi insultado, não respondeu com insultos. Quando foi agredido, não ameaçou, mas pôs sua esperança em Deus" (1 Pe 2:18-23, ênfase no 21-23). O próprio Jesus nos disse que seríamos afligidos por sermos seus discípulos, que haveria perseguições e violência contra nós. Portanto ele precisava mostrar em si mesmo como reagir a isso.

Portanto, Jesus não "deixou barato" porque precisava ser levado para a Cruz, mas também porque precisava mostrar como devemos reagir. 

E que mesmo aqueles que andavam ao seu lado estavam sujeitos a sua natureza violenta e deveriam se conter. Ninguém teve melhor professor do que Pedro.

A matemática que reflete a essência

Em Mt 5 no famoso Sermão da Montanha, Jesus traz algumas lições a mais para nossa lista:

Não basta não matar fisicamente. Aquele que odeia o seu irmão, que nutre raiva é culpado - tanto quanto alguém que não trai fisicamente é adúltero ao olhar com desejo para outra pessoa. Enquanto as consequências são menores (os dois atos não foram consumados), o pecado é o mesmo perante Deus.

Não devemos retribuir olho por olho, na mesma medida e com as mesmas ferramentas (v. 38).

Dê mais do que lhe pediram, seja por necessidade ou por extorsão (v.39, 40, 42). Mesmo que um soldado estrangeiro te force a algo, faça além, faça melhor espontaneamente. 
Surpreenda até mesmo seu opressor (v. 41).

A aritmética do homem é olho por olho. É cumprir 1 quilometro se foi mandado marchar 1 quilometro. É dar pagamentos positivos a quem depositou coisas positivas. Essa matemática apenas reflete o que o homem é, e sabemos que nem o que foi combinado os homens costumam cumprir entre si.

Mas Jesus nos ordena a usar a matemática "trouxa" da Graça, dando a quem não semeou, retribuindo o que não foi oferecido. Pois isso vai refletir algo além do homem, vai refletir quem o Pai é - pois não é natural do homem, vai gerar estranheza a quem vê, e essa estranheza desperta a curiosidade. E porque foi isso que nos foi feito pelo Pai por nós. Essa matemática furada vai se conectar com a parábola do cobrador impiedoso (Mt 18:21-35), como um exemplo negativo daquele que quer cobrar agressivamente R$ 1 ao ter sido perdoado de R$ 1000.
Ao mesmo tempo temos um exemplo positivo em Lc 16:1-13, a parábola do administrador infiel, que vendo que não passaria no crivo contábil, que não sobreviveria ao "olho por olho" junto ao seu patrão, tratou de agir com perdão e graça com os devedores.


"O reino de Deus é conquistado à força"

Uma outra passagem é usada para defender que a implantação do Reino deve ser feita aceitando a imposição e força:

Mt 11:12 - Desde os dias de João Batista até agora [Jesus falando] o Reino de Deus é tomado à força, e os que usam de força se apoderam dele.

Existem várias interpretações quanto aos elementos destacados em azul acima, no original em grego do NT. Porém nas 4 possibilidades de interpretação, não há espaço para violência, e sim que conforme o Reino avança, o mundo é quem oferece resistência violenta. Não a igreja, o mundo! 

Para não estender muito, para quem quiser uma análise mais técnica desse trecho, deixo um link que acho bem ilustrativo: 





Limpando o templo


E chegamos finalmente ao trecho mais polêmico. Primeiro vamos olhar o trecho isoladamente. Depois vamos olhar ao entorno, no que veio antes e depois na bíblia.

O trecho de Jesus fazendo essa limpeza no templo (em inglês é referido literalmente como "Jesus on temple cleansing") está nos 4 evangelhos: Jo 2:13-22; Mt 21:12-17, Mc 11:15-19, Lc 19:45-48. Apresento um condensado dessas passagens abaixo. Algumas falas de Jesus só aparecem em um autor e não em outro.


Um pouco antes da Páscoa judaica, Jesus vai ao templo em Jerusalém. No pátio do templo havia vendedores de bois, ovelhas, cabras, pombas, e os cambistas, que trocavam moedas de outros reinos (por causa dos estrangeiros que vinham para a Páscoa). Isso era previsto na lei de Moisés, para ajudar quem vinha de longe a não ter suas ofertas vivas prejudicadas (bois, dízimo da colheita de vegetais, que secariam), conforme Dt 14:24-26.
Fez um chicote de cordas e expulsou as pessoas dali, os que vendiam e os que compravam, e todos os animais como ovelhas, bois, etc. [Esse trecho pode ser traduzido também como "expulsou todos os animais, tanto ovelhas como bois"]
Virou as mesas derrubando as moedas pelo chão, e disse aos que vendiam pombas- Tirem tudo isso daqui - e derrubou as cadeiras dos vendedores de pombas [aqui uma nota: os bois e ovelhas expulsos poderiam, assim como as moedas, serem facilmente ajuntados pelos donos depois de enxotados. As pombas não, pois voariam. Jesus respeitou a propriedade alheia, apenas "deslocou" todos eles de lugar].
Então Jesus bradou:-Parem de fazer da casa de meu Pai um mercado!-A minha casa será chamada Casa de Oração! Mas vocês a transformaram em um esconderijo de ladrões!
Os líderes judeus foram tirar satisfação: Com que autoridade você fez isso? [aqui suponho que com certa ameaça física, para justificar a resposta de Jesus na sequência, falando de seu corpo, sua integridade física].
E Jesus responde: -Destruam esse templo, e eu o reconstruirei em 3 dias!
Depois disso os sacerdotes começaram a tramar um jeito de matar Jesus, longe dos olhos do povo, que o admirava.

Algumas considerações importantes: 

A compra e venda de animais era lícita, pela lei de Moisés, para aqueles que moravam longe. Se você era seguidor do judaísmo mas não morava em Jerusalém, ao menos 1x por ano deveria ir até lá dar o dízimo do que Deus te deu. Mas ao viajar com bois, carroças com alimentos e afins, o produto se estraga (e não seria aceito pela Lei) e há risco de roubo. Ou o animal (bois e ovelhas) poderia se machucar no trajeto e Deus não aceitaria pela Lei um animal defeituoso ou machucado. Portanto a Lei permitia vender essas ofertas de animais e colheitas na sua cidade, e levar o dinheiro para o templo em Jerusalém, para comprar lá o que precisa ser ofertado (Dt 14:21-29).

Para que Jesus estivesse tão bravo com algo que a Lei permitia, era porque não estava acontecendo com boa intenção, seja da parte dos vendedores (extorquindo com preços altos, ou com câmbios exagerados), seja dos compradores (que poderiam ser da região mesmo e por falta de zelo, de piedade ao longo do ano todo, deixavam para comprar a oferta na última hora, pra cumprir tabela, cumprir a obrigação, e não como culto). Ou ainda - e essa é minha impressão - de que isso era um sintoma de um desvio mais profundo que estava instalado no Templo e nos poderes religiosos vigentes.

O uso de chicote só aparece em 1 dos 4 evangelhos (João). Uma atitude tão "disruptiva" de Jesus, depois do sermão do monte, seria no mínimo marcante para aparecer na maioria dos registros sinópticos. E esse trecho, segundo nota de rodapé da SBB (Sociedade Bíblica do Brasil) pode ser traduzida colocando como alvo do chicote as ovelhas e os bois. Isso faz bastante sentido, pois é comum vermos os peões usando de instrumentos como esse pra tocar o gado ou o rebanho, com o reio ou um galho grande. 


Precisamos atentar aqui que todo o processo se dá no contexto religioso, e não no secular. Jesus está atuando aqui como um profeta - que no sentido correto da palavra, é aquele que denuncia o erro dos reis (quando Israel era um reino), dos sacerdotes e dos irmãos da fé, e não um 'adivinho'. E esse papel de profeta vai ser reforçado ao vermos os trechos ao redor desse evento.

Jesus como profeta contra Jerusalém

Não é à toa que Jesus brada a expressão destacada em vermelho abaixo. E não é à toa que os líderes religiosos ficam bravos pois reconhecem a origem dela:

Mas vocês a transformaram em um esconderijo de ladrões.

Essa passagem ecoa muitos séculos antes na boca do profeta Jeremias (Jr 7:11).
Nessa época, o sistema religioso do templo estava passando por profunda corrupção e hipocrisia. Os ricos oprimiam os pobres (Jr 5:26-29) e também os pobres oprimiam seus semelhantes (Jr 6:13). Todos eram ocupados em enganar, adulterar e idolatrar entidades pagãs (Jr 9:1-9).

Os sacerdotes distorciam a Lei - resgatada no tempo do Rei Josias - e dentro do próprio templo adulteravam, roubavam, pregavam apenas boas notícias e faziam vista grossa ao pecado do povo. Perseguiam aqueles que Deus mandava denunciar a verdade. Alteravam e escreviam leis religiosas distorcidas (Jr 8:8) e usavam isso para dominar o povo, "e o povo gostava disso" (Jr 5:31)

Olha só que interessante uma das denúncias de Deus a Jeremias:
Vou castigar Jerusalém pois ela está cheia de violência. Como de um poço sai água, dessa cidade brota pecado. Só falam nas ruas da cidade, de violência e destruição. Só vejo doenças e ferimentos. (Jr 6:6-7)
A situação da época de Jeremias fica como:
  1. Deus estava furioso com a sujeira e impiedade no sacerdócio e do povo judeu
  2. Jeremias como profeta denuncia o pecado entranhado, a iniquidade dos religiosos, e clama que a casa de Deus virou covil de salteadores.
  3. Deus lamenta como queria reunir seu povo perto de si, mas seu povo é como figueiras sem figos, secas (Jr 8:13).
  4. Deus rejeita os sacrifícios feitos e os cultos prestados (Jr 11:15)
  5. A classe religiosa podre planeja violência contra Jeremias, como um cordeiro sendo levado ao matadouro (Jr 11:18,19)
  6. Deus levanta um reino poderoso estrangeiro (Jr 5:15-17), que domina e destrói o templo em Jerusalém, trazendo terror, valas coletivas queimando fora da cidade (onde se queimava lixo, em Hinom) e desolação (Jr 7:32-34).
Será que já não vimos isso no Novo Testamento? 
  1. A classe religiosa estava enfurecendo a Deus (Mt 23:13-36)
  2. Jesus denuncia os fariseus, sacerdotes e afins, e profere a mesma frase
  3. Jesus chora por Jerusalém (Mt 23:37-39) e também uma figueira seca (Mc 11:12-14,20) representa o futuro próximo de Jerusalém.
  4. Jesus toca os bois e ovelhas (normalmente caros e oferecidos pelos ricos) como as pombas (geralmente ofertados pelos mais pobres), mostrando a rejeição daquela hipocrisia legalista
  5.  A nata religiosa procura um jeito de matar Jesus (Mc 11:18)
  6. O império romano entre 66 e 70 dC destruirá o templo (Lc 21:1-24) e assolará Jerusalém (Lc 19:41-44). Os corpos de milhares foram empilhados no mesmo Vale de Hinom citado em Jeremias, que Jesus chama de Geena (inferno) no NT.
Assim, Jesus estava trazendo juízo para o templo e a classe religiosa, em ressonância com o que seu Pai fez com Jeremias. E em ambos os casos, culmina com a destruição do templo, sem sobrar "pedra sobre pedra".

interessante que além de apontar para a rejeição das ofertas, a expulsão dos animais do templo ecoa a desolação de Jeremias numa Jerusalém esvaziada (Jr 9:10) e a fúria de Deus pela perversão do povo atingindo "pessoas, animais e plantas" (Jr 7:20).

Portanto, essa atitude enérgica de Jesus está bem localizada e definida no contexto profético, aplicada somente ao ambiente religioso vigente, e denunciando toda uma estrutura eclesiástica apodrecida, muito além dos cambistas porém incluindo-os. Mais do que pombas, os sacerdotes estavam comprando vidas humanas (a vida de Jesus foi negociada com Judas por 30 moedas, o preço de um escravo).

Basta olhar para as atitudes das classes que habitavam o templo no NT: os sacerdotes, sumo sacerdotes frente a João Batista, Jesus e depois com os discípulos, Pedro e João, Paulo, Estêvão, Filipe. Perseguição e atitudes violentas, e associação com o poder político, com medo de desagradar Herodes, Pilatos, e jogando esses poderes políticos contra Jesus e seus discípulos, incitando a prisão, tortura, surras e morte. 
Cegueira espiritual, ao não conseguir enxergar o Reino chegando com João Batista e Jesus. Isso também acontece em Jr 5:21; 6:10.

Olhe para o final do Evangelho de Mateus, capítulo 28, onde os sacerdotes compram o silêncio dos soldados romanos que vigiavam o túmulo de Jesus e viram o anjo, e pagam para que eles mintam sobre o ocorrido. Ainda por cima, se comprometem a dar falso testemunho, contrariando seus próprios 10 mandamentos, a fim de manter seu poder político-religioso intacto. Isso é um sintoma bem grave da podridão religiosa ali.
Se olharmos a atitude de Jesus ao longo dos evangelhos, seus sermões, e compararmos com a atitude dos sacerdotes do Templo contra Estêvão, que taparam os ouvidos e gritavam (para não ouvi-lo proclamar Jesus), enquanto avançavam violentamente contra ele, quem está manisfestando o Reino?
E apenas um profeta, ao mesmo tempo Filho do dono da Casa de oração, Rei e sacerdote, Jesus, tem autoridade para trazer juízo e aplicar a sentença. Jesus não chancela nenhuma atitude de confronto profético agressivo. Vide as recomendações de Paulo sobre aconselhar irmãos que estão em pecado, "se velhos, como se fossem seus pais, se mais novos, como a um filho".

A condenação estava acontecendo na casa do Pai de Jesus, e o pulso firme estava sendo usado pelo Rei para com o seus supostos súditos. 

Partindo do absurdo

Vamos partir da hipótese de que Jesus foi fisicamente violento com o pessoal do pátio do templo. Todo o explanado acima desmente isso, mas vamos tomar como verdade para pensarmos.

Um profeta que diz para fazer A o tempo todo, mas em uma passagem faz o contrário de A.
Onde já vimos isso? 
Um exemplo é Oseias, que proclamava a fidelidade do povo à Deus e a obediência à Lei, mas por ordem de Deus casou-se com uma prostituta e ainda teve filhos com ela. Eram consideradas impuras. A lei proibia a prostituição. Porém em nome do cumprimento de um ato profético, para denunciar a ira de Deus para com Israel que o estava desobedecendo e traindo com outros deuses pagãos, ele teve um "Excludente de ilicitude profética", saindo da regra pregada, em nome da aplicação da profecia de maneira palpável.

Poderíamos dizer que essa violência apenas é aplicável em extremos em que somos ameaçados de morte, ou em contextos de embate religioso - porém mesmo no contexto religioso, Jesus foge do embate físico - veja como ele se escondeu na multidão e saiu do templo em Jo 8:59, quando os religiosos queriam apedrejá-lo. Mas não fez o mesmo quando era a sua hora no Getsêmani. Em nenhum dos dois eventos, Jesus aceitou revidar com violência, e sim com fuga ou mansidão.

Portanto até mesmo o Excludente de ilicitude profética tem limitação da violência.


Concluindo o episódio no Templo

Quando comparamos toda a trajetória, exemplos práticos e sermões de Jesus nos evangelhos, e o episódio no Templo, fica evidente que não se trata de uma conduta ensinada por Jesus, parte da cultura do Reino de Deus. A ausência do chicote nos demais sinópticos, as possíveis traduções do grego e a interrupção profética dos sacrifícios de gratidão, pecado e paz, são justificativas sólidas para não atribuir violência na atitude de Jesus.

Mas com ou sem chicote nas pessoas, esse evento é muito alienígena ao resto dos evangelhos, e exige uma explicação maior. Em favor disso pesa o trecho que diz "irai-vos mas não pequeis, para não dar lugar ao diabo", e o fato de Jesus nunca ter cometido pecado. Logo, ele não pode ter tido um simples acesso de raiva revoltado pela exploração comercial e corrupção sacerdotal. A estranheza de Jo 2 exige um plano maior.

O incrível alinhamento com a estrutura profética de Jeremias é uma explicação que harmoniza essa estranheza, pois não permite a extensão do ato enérgico de Jesus (como profeta, juiz e executor) para seus discípulos, enquanto traz a condenação de Deus para o seu templo novamente.

Jesus é o que eu precisar

Muitas vezes somos levados a trazer Jesus para as nossas preferências, tentando inconscientemente encaixa-lo nos modelos de mundo que nos agradam. Mas como já falamos no post sobre cidadania cristã, nosso crivo primeiro não está em modelos políticos ou econômicos humanos, e sim no Reino.

A passagem da mulher samaritana no poço de Sicar permitiria aos mal intencionados de realçar que a salvação vem dos judeus. Junte isso a passagem da mulher siro-fenícia onde Jesus se recusa num primeiro momento a abençoa-la e você tem uma receita para permitir ações xenófobas ou nacionalistas, como "veja como a Bíblia permite elitismo de raça ou etnia". Mas isso só funciona se isolamos o resto de Jesus (p.ex. a parábola do bom-samaritano). Um texto fora de contexto, sempre esconde um pretexto.

 Portanto trazer a "limpeza do Templo" como justificativa teológica de atitudes violentas, ou qualquer violência reativa ou 'preventiva' é no mínimo, apressada, e pode instigar os cristãos a terem um comportamento diferente de Jesus e não como cidadãos do Reino.

 Também vemos Mt 10:34 Jesus dizendo que veio trazer espada e não paz - não significa que podemos participar de atos violentos "em nome do Reino". 

Mas sim que por sermos primeiramente cidadãos do Reino, todo nosso tecido social é ou pode vir a ser rompido por nosso compromisso primeiro com esse reino. Nossas relações familiares podem ser abaladas.
Lembre-se que em muitas culturas - como a judaica e a romana - a religião era parte central de muitas atividades sociais e relacionamentos públicos. Assumir o Reino e o evangelho era rasgar a si mesmo do tecido social, das festas, eventos, e até mesmo excluir a si mesmo da família. Por isso mesmo Jesus diz que "quem perdeu pais, mães, família por causa do evangelho, ganhará ainda em vida tudo isso multiplicado por 10" através da Igreja.

 O caminho de Emaús é um bom exemplo de como as pessoas mesmo andando com Jesus ainda buscavam suas agendas políticas.

 Eles esperavam que Jesus fosse o libertador, o novo Davi poderoso que livraria Jerusalém dos romanos opressores e exploradores. Andavam tristes sem esperança. Enquanto seu foco, sua mente, estava na aplicação política de Jesus, eles não o reconheciam mesmo estando do lado deles.

 Jesus foi reconhecido quando Sua palavra foi compartilhada, quando ele partiu o pão pacificamente e deu graças. É esse o efeito do Cristo de verdade nos nossos corações, que o faz queimar não pelo ódio e revolta, mas pelo partilhar, pela comunhão e pela gratidão a Deus.

 Assim sendo, não é compatível com o evangelho nenhum argumento que encaixe "violência em nome do Reino de Deus".

 Vi há pouco em páginas públicas, gente "de Deus" defendendo leis e ações violentas, na forma de "todo castigo é pouco pra bandido", trazendo trechos do Velho Testamento como autorizações. Meus queridos, eu fui chamado para ser discípulo de Jesus, não de Josué, não de Moisés, nem de quaisquer outras sombras imperfeitas antes de Jesus. 

O meu Senhor, o que compra minha dívida e me torna seu escravo salvo da morte eterna é Jesus de Nazaré, e a Ele devo obediência e imitação E este como vimos acima, não dá margem para violência em seu Reino.

Claro que isso significa que a Igreja historicamente tomou certas bandeiras e partidos, entrou em certas bolas divididas que não deveria, e a consequência é o que vimos em tantas guerras, cruzadas e perseguições. Há terríveis erros da Igreja como instituição tanto antes como depois da Reforma Protestante. Calvino e Lutero também tiveram atitudes no mínimo indigestas em alguns casos.

E não é possível usar a desculpa do "espírito da época" ou Zeitgeist, dizer que eram homens do seu tempo e por isso limitados. O conjunto de textos citados lá no começo é o mesmo há pelo menos 1600 anos desde o códex mais antigo preservado. Esse conjunto de recomendações de Paulo, Pedro, Tiago, e ensinos de Jesus, faz parte das bíblias católicas e protestantes. Muitos camponeses e plebeus não sabiam ler, conheciam apenas o que ouviam nos sermões e missas. Mas não há desculpa por ignorância aos líderes que tinham acesso aos textos.

Esses erros graves do passado não nos isentam de hoje sentar, ler, refletir de qual Reino somos, e mudar de vida, revitalizar e pacificar a igreja como instituição e sua interface com o mundo.


Lembrando que o outro é alvo do evangelho

Não temos como cidadãos do Reino, motivo para aplaudir bandido morto, gente executada por qualquer lado do conflito urbano.

Não podemos ser indiferentes à policiais corruptos, ou desproporcionalmente agressivos, deliberadamente violentos e covardes, como semanalmente vem à tona nos noticiários. Gente que extorque, que atira pelas costas, gente que cria milícias e poderes paralelos. 

Sabemos que os policiais se arriscam por nós nas ruas, e a maioria competente e boa recebe a má fama dos poucos maus, que saem na TV. Devemos orar pela PM sempre, pois eles tem famílias que esperam todo dia ansiosas pelo seu retorno inteiros. Assim como nós, a maioria deles não quer ir todo dia pra guerra, e prefere não ter de atirar nunca. Essa rotina é psicologicamente pesada para qualquer um, sem mencionar a infraestrutura muitas vezes precária em vários quartéis e delegacias, e a desigualdade bélica (o bandido muitas vezes tem uma arma ilegal mais destrutiva que a PM e capaz de furar suas proteções).

Poucos dão cartaz à face solidária da PM, que além da segurança, muitas vezes faz serviços que não teria obrigação - até mesmo partos, comprar comida ou um botijão de gás, ou servir de terapeuta em discussão de marido e mulher de madrugada.

Eles também têm famílias que sofrem e amam

Ações solidárias nas comunidades

Há décadas as mulheres tem espaço na PM

Muitos esquecem (ou fingem não lembrar) de que a existência da polícia torna possível que nós não precisemos usar de força diariamente para proteger nossos direitos e propriedade.
Tem muita pessoa bem de vida, todo paz e amor, desconstruído, que esquece que só pode ser Zen porque o condomínio tem vigilância particular 24h e as ruas tem policiamento do Estado. De certa forma - por mais ineficiências e defeitos que possua - a existência da polícia e da Justiça evita em muitos casos que eu e você tenhamos que andar armados, prontos a defender nossa propriedade e nosso bem-estar, e tenhamos de usar violência.

E após digerir toda essas passagens bíblicas, me parece justo trazer para discussão pautas como a desmilitarização das polícias, adoção de armas não-letais e formas de contenção de violência que neutralizem a ameaça, incapacitem temporariamente o indivíduo e ao mesmo tempo protejam a vida dos inocentes ao redor.  Programas que ajudem a PM atuar na causa raiz dentro das comunidades e bairros, e não apenas na ponta, no sintoma. E uma punição rigorosa e midiática dos PMs ruins.

O Brasil é o país onde a PM mais mata, mas também onde ela mais morre. Ações que possam levar a reduzir esses dois números é condizente com o Reino. Considerar que esse embate polícia x bandido é o tratamento do efeito e não da causa, e de que quem quer que morra no conflito, é um potencial filho de Deus e alvo do seu amor. Diferente de "passar a mão na cabeça de bandido", o evangelho nos pede para deixar a reação violenta longe da tratativa, ao mesmo tempo que nos pede prudência. Nem justiçamento, nem facilitação. Pregamos contra o pecado local e o pecado instalado nas relações.

Conclusão

A violência não é uma ferramenta válida na mão do cristão. Não é um recurso do Reino de Deus. Nossa maneira de lutar é outra, nossas armas são espirituais. Xingamento, ódio mútuo, conspirações, guerrilhas ou milícias, nada disso é da nossa nova cidadania. Isso inclui a violência digital, que não é menos danosa por ser virtual.

Nosso rabi, nosso Senhor, não deu espaço para sermos outra coisa senão como ele: manso, aberto mesmo aos que queriam seu mal. Esperto mas não malicioso.

Bandido bom é bandido contido, e se possível, convertido ao evangelho.
A polícia deve ser vista como amiga da sociedade e com honra. E toda maçã podre deve ser punida na forma da lei.

Somos chamados como embaixadores do Reino de Deus, e se somos Seus filhos, então como diz o sermão do monte, devemos ser pacificadores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário