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terça-feira, 9 de novembro de 2021

A igreja e o bolo de banana

 





Imagine que eu acorde as 6h da manha, pegue R$ 100 em ingredientes e comece a preparar um bolo - de banana por exemplo, que é meu preferido. Eu quero fazer um bolo delicioso, e gasto todo o dinheiro em ingredientes de primeira qualidade. Eu quero vender esse bolo, e fazer um dinheirinho extra. Vamos imaginar que eu queira ter R$ 20 de lucro, e a receita me rendeu 12 pedaços. Logo, eu preciso vender cada um por 100+20= 120, dividido por 12 = R$ 10 cada pecado.

Uma vez que nao sou bom com bolos, gasto 6h preparando esse bolo. Quando é 12:00 eu retiro do forno um verdadeiro tijolo quebradiço. Cinzento. A massa pesada que não cresceu. Um gosto exagerado de ovo e textura de farinha úmida. Uma tragédia que rendeu 1 kg de feiura.

Se eu pegar esse bolo e levar para vender na frente de uma escola, empresa ou numa feira, sem me conhecer você compraria? Você olha um pedaço de tristeza e perigo, cinza, pálido, que desce quicando pela garganta e leva uma tarde toda pra digerir, por R$ 10. 

Provavelmente você dirá "nem morto! primeiro, está muito caro! e segundo, parece horrível!"

Mas eu posso reclamar com você: "Ei, mas eu gastei 6 horas nisso! e mais de R$ 100 em ingredientes saborosos, sustentáveis, naturais e orgânicos! O preço é justo sim, eu me esforcei muito pra fazer isso!"

Ao que você provavelmente vai dizer "eu sinto muito! não dá pra comer isso, eu vou gastar meu dinheiro suado com algo ruim de comer? eu quero ter prazer ao comer, não uma indigestão! tanto faz quanto tempo levou, quanto você gastou".

Aí você olha para o lado e vê um bolo bonito, fofinho, cheirando de longe um cheirinho de casa da vó, por R$ 5, feito pela Dona Cleonice, boleira de mais de 20 anos de experiência. Nem preciso perguntar qual vai te fazer sorrir (no rosto e no bolso!).

A todo momento avaliamos o custo-benefício das coisas, antes de trocar nosso tempo ou dinheiro naquilo. Essa é a função-utilidade esperada ao obtê-lo. É o conjunto de coisas que colocamos internamente na nossa balança, para decidir fazer ou não fazer algo.

Você compra um bolo pra ter uma experiência saborosa, porque naquele momento você considerou que era mais satisfatório saborear um bolo do que manter o dinheiro no bolso. Você considerou o preço, o provável prazer do paladar, e achou que valia a pena. Ou no caso do meu bolo-tijolo, que não valia. Que era melhor manter R$ 10 consigo do que o paladar do bolo cinzento (e os remédios pra digestão depois). O meu enorme esforço não entrou na sua conta, nem o quanto eu gastei de materiais. Você analisou preço e satisfação (paladar), ou seja, o que você consegue levar consigo na troca.

Talvez em outro momento, a função-utilidade do bolo pra você passe a incluir as calorias e o esforço de emagrecer. Talvez mesmo sendo barato e delicioso, esses novos fatores diminuam a função-utilidade do bolo pra você.

O que podemos ver aqui é que a função-utilidade, o modo da sociedade e de cada um de nós valorizar as coisas e acoes é mediante um conjunto limitado de interesses e valores, que mudam com o tempo, com a situação, e que ignoram outros fatores anteriores (por exemplo, o meu esforço).

Por isso quando discutimos sobre "meritocracia", cometemos o equívoco de misturar esforço com mérito. O mercado (nós) não paga pelo esforço, não considera esfôrço um mérito. Ele paga pela função-utilidade, pelo valor subjetivo que é dado por quem compra. Um programador tem muito menos esforço físico que um pedreiro, mas muitas vezes o que o programador gera com seu tempo (software) é muito mais caro do que o muro ou a casa erguida pelo pedreiro. Ambas as profissões são importantes, mas o esforço de cada um é pago de maneira diferente em R$/hora.

Basicamente introduzimos aqui o conceito de economia. Gente organizando os seus recursos (habilidades, tempo, esforço, etc) para trocar por recursos de outras pessoas/empresas. O dinheiro serve apenas como intermediário. Os empregos funcionam como maneiras de trocar o que temos/sabemos, por dinheiro, e os mercados e lojas trocam o dinheiro por coisas.

E isso é muito humano. Mas ser muito humano pode significar perigo, já que nossa natureza é pecaminosa, é falha, tende ao erro.

Nós também temos rotinas dentro das nossas igrejas. Somos confiados por Deus com recursos, dons, talentos, e também existem funções-utilidade dentro de cada um dos membros.

Algumas perguntas importantes que podemos fazer são:

  • A função-utilidade dentro da igreja, está correta, está bíblica?
  • Nós organizamos os recursos da igreja - pessoas, dons, dinheiro, tempo - em ministérios, atividades, programações. Mas qual é a função-utilidade dessas atividades?
  • A função-utilidade dessas atividades é a mesma no nosso discurso e nos resultados práticos? ou em outras palavras - o que a gente diz que é o motivo das programações e ministérios, é realmente o que estamos vendo acontecer, obtendo de verdade?
Pode ser - e infelizmente acaba sendo - que a igreja crie um ministério, planeje uma atividade, com várias finalidades em mente. 
Ela espera obter mais membros, espera obter momentos de lazer, de festa, espera formar líderes...muitas funções-utilidade podem ser associadas oficialmente. E outras veladamente - obter mais exposição (aparecer mais), aumentar a arrecadação, se aproximar de alguém ou manter alguém afastado, criar um grupo ou protege-lo.

E tudo isso sem se perguntar se para o senhor da igreja, se para Jesus a função-utilidade é a mesma. Eu fico pensando em Jesus olhando para certas programações, ministérios e iniciativas propostas e dizendo:
E pra quê eu vou querer isso? em quê essa ideia de vocês cumpre ou satisfaz as minhas expectativas, as minhas ambições? em que isso reflete o que eu prefiro e aquilo a que eu dou valor? 

Eu deixei à disposição de vocês talentos, pessoas, dons, saúde, tempo - como vocês estão usando isso conforme a minha função-utilidade, conforme as minhas expectativas, os meus valores, levando em conta a minha satisfação e o meu interesse?  

Ou ainda:
Quando exatamente essa iniciativa de vocês vai trazer as coisas que eram planejadas? ou melhor, os frutos que estão aparecendo são os que eu espero?
Tendo gente necessitada na igreja e nos arredores da igreja, casais em crise por dívidas, gente doente sem plano de saúde, planejamos a ampliação do templo ou o embelezamento "da casa de Deus" com mármore, com vitrais, com tecnologia de ponta no som e imagem.

Mesmo com casamentos e famílias desmantelados gradativamente, aumentamos os esforços nos cultos de celebração, de festa, encontro de casais, encontros da família - sem parar pra analisar que vai cada vez menos famílias, com cada vez menos gente, e sempre são os mesmos clãs que se encontram fingindo que está tudo bem.

Quais são ou quais seriam as funções-utilidades, as coisas que Jesus poe na balança para decidir se é bom ou não vale a pena? Lembre-se que "todas as coisas são lícitas mas nem todas convém".

Primeiro, qual seria a função-utilidade da igreja pra Jesus? O que Ele espera ao relacionar-se com ela, ao criá-la e mante-la como sua noiva?
Isso por si só já rendeu livros inteiros, então vou tentar focar mais no raciocínio e menos nas dezenas de respostas possíveis pela Bíblia.

Me atrevo a pontuar algumas, que parecem condizer com as Escrituras:
  • uma comunidade onde gente doente é usada por Deus para cuidar de outros doentes
  • um grupo que reflete ao mundo uma amostra parcial do Reino de Deus por vir
  • um lugar para pertencer e aprender juntos a ser mais parecido com Cristo e entender Sua vontade e suas prioridades
  • o ajuntamento dos que pecadores que celebram sua salvação e filiação em Cristo
  • A noiva que prepara a si mesma para o noivo (Cristo) e anuncia a Sua vinda;
Das coisas acima, eu poderia sugerir (sem tentar ser exaustivo), que nós devíamos nos perguntar se os ministérios, atividades, formatos, liturgias e programações:

  • contribuem para que os problemas e urgências dos membros sejam conhecidas de maneira cuidadosa e em amor (sem fofoca e nem desprezo), buscando nos próprios dons e bençãos da comunidade uma solução ou um consolo?
  • fazem os irmãos e irmas se enxergarem melhor e aumentar seus vínculos, sua intimidade?
  • integram mais pessoas e prestam atenção aos deslocados e avulsos, incentivando o pertencimento, respeitando as limitações e dificuldades de cada família?
  • Falam de pecado, correção de comportamento?
  • ajudam a entender santidade, mordomia e redenção na sua vida diária?
  • promovem um crescimento contínuo da leitura e exposição da Palavra?
  • mantém a igreja visível no seu entorno, no bairro, na região, não pela atividade mas pelos valores demonstrados, pelo testemunho, abençoando a cidade?
  • ajuda a sociedade ao redor a enxergar mais Jesus e entender melhor a Bíblia?
  • ensinam a louvar e celebrar a Deus além da música?
  • Mostram e cobram a intimidade individual no quarto secreto, você com Deus, diária?
  • separam um tempo para reunião de oração semanal?
Em outras palavras, ajuda os membros a serem uma família unida e atenta, mas individualmente engajados em mudar pra melhor em Cristo?

Assim como meu bolo foi um desperdício de dinheiro, tempo, energia, e sequer era consumível, e causaria mais doença do que saúde, pode ser que coisas "de igreja" se tornem indigestas, adoecedoras, desperdícios mal administrados. Se as programações, eventos e ministérios não tem sido orientados pela função-utilidade de Cristo e sim dos líderes, é provável que sintomas apareçam:
  • Ministérios que definham enquanto outros incham e depois racham internamente por desentendimentos
  • Satélites-humanos: visitantes e membros não-frequentes que passam meses sem desenvolver conexões até que um dia param de vir
  • Famílias e membros que não conseguem acompanhar os ministérios e programações por questões econômicas, logísticas ou de escolaridade, e se sentem intimidados ou abandonados dentro da igreja.
  • As programações e ministérios ficam girando em torno das mesmas pessoas, famílias e casais, que por sua vez formam uma liderança que se auto-organiza conforme é conveniente
  • O ministério continua funcionando com a mesma agenda, embora seus membros estejam vivendo crises conjugais e dramas familiares graves
  • O louvor musical é o ápice do culto e a maior parte dele.
  • Grandes gastos com a estética do templo e com melhorias tecnológicas para "ter o melhor na casa de Deus" e não para fins práticos - uma ostentação "santa"
  • Os temas pregados são mais de auto-ajuda do que confronto e mudança de vida.
  • A escola dominical sumiu ou se arrasta com os mesmos temas, e uma classe de idosos e outra de crianças. Os professores não mudam porque não há membros mais "bem nutridos" para ensinar.
A igreja então não é mais uma comunidade de onde emergem ministérios conforme os dons - algo orgânico, algo que vai surgindo enquanto a comunhão aumenta e o discipulado se fortalece. 
Não, aqui a igreja se tornou uma máquina de eventos, de departamentos, uma serva da liturgia, que tem que ser continuamente alimentada e nunca pára para olhar pra trás. 
Ela não olha mais nem para os lados (entendendo os limites e problemas da membresia) nem para o alto (alinhando-se com as prioridades da cabeça do Corpo, o Cristo). Ela olha pra si mesma e segue obstinada e orgulhosa, de "estar fazendo a Obra custe o que custar" - sem necessariamente entender o que "a Obra" realmente é.

Tudo isso é igual ao bolo ruim e caro da estória, gastando errado com algo que eu não sei fazer.
É ignorar a função-utilidade da igreja, e portanto montar seus ministérios e agenda focados em coisas que Jesus não espera obter, com os recursos que Ele havia dado para gerar vida - e acabar gerando morte.

Os ministérios não surgem do grupo, eles são montados e a liderança fica tentando enfiar as pessoas nas caixinhas ministeriais de sempre.

A igreja não pára para olhar pra trás, não "tira o pé do acelerador", não reavalia os resultados de cada iniciativa para decidir se continua ou se redireciona suas forças para cuidar das "engrenagens vivas". Não é uma derrota do Reino ou uma vitória do diabo a gente retroceder e se reorganizar, se o motivo for tratar vidas, ser ferramenta para curar feridas, restaurar relacionamentos e ser bênção na vida do meu próximo.

A própria Palavra nos traz as prioridades - antes da liturgia, antes da oferta, antes do ministério, vem a comunhão. Vem o cuidado com o próximo:

Se estás, portanto, para fazer a tua oferta diante do altar e te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; só então vem fazer a tua oferta. (Mateus 5:23,24)



Portanto sem essa consciência, não é mais uma igreja, não no sentido bíblico, porque não está mais produzindo santos, testemunho, missões, relacionamento real interno nem externo. Tem uma agenda, um CNPJ, uma hierarquia, se reúne mas não faz Deus sorrir, não transforma, não tem a potencia do Espírito agindo, ou como Paulo cita, "o poder da Sua ressurreição".

Você líder, você ministro, pastor, ancião, pense na pergunta mais importante: 
Qual é a função-utilidade da igreja pra Cristo? será que eu sei ou tenho intimidade suficiente pra saber?
Se sei, o que eu devo manter, mudar, reforçar ou desmontar na minha agenda eclesiástica, para dedicar energia ao que importa a Deus, e produzir o que Ele espera?

 Depois não adianta tentar argumentar com Jesus:

Mas senhor, em teu nome expulsamos demônios, profetizamos em Teu nome, fizemos milagres,...enchemos o templo, organizamos workshops, conferências missionárias, ministérios, criamos uma logomarca pro grupo e até canais nas redes sociais! Nos esforçamos muito!

Todo esforço e agitação que foi produzido não vai fazer parte da balança, tanto quanto 6h de trabalho não tornam bom um bolo ruim.

Sem buscar o que Ele valoriza, sem aplicar o que Ele te deu naquilo que produz o que Ele prefere, vai restar pra nós ouvir:

Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci, nunca tive intimidade com vocês. Afastem-se de mim vocês que praticam o mal! (Mt 7:22-23)



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